Já não lembro quem enviou nem de onde veio a pergunta (acho que foi do Twitter), mas achei boa: Por que só se fazem debates literários e resenhas sobre lançamentos e autores clássicos? Onde fica “o resto” da literatura, os livros que não se encaixam nesses grupos?
Há uma boa dose de verdade na percepção do leitor ou da leitora. Como jornalista, tenho a resposta fácil: a imprensa escreve sobre obras frescas porque é da natureza do ofício estar em busca do que é novo, do olhar que agregue aos debates. Mostrar para os outros o que poucos viram ou, por outro lado, compreender certos fenômenos.
Sim, isso logo descamba num problema: uma onda de profissionais e leitores olhando meio que para o mesmo lado, para os mesmos livros. Apontei numa edição de março da newsletter: é nítida a preocupação em colher likes e visualizações com aquela novidade “imperdível”, com o grande livro de todos os tempos da última semana. A lógica das redes - e a forma como se ganha dinheiro na internet, importante lembrar - agrava a situação.
Lembro uma conversa que tive certa vez com um editor. Sugeria uma pauta sobre um lançamento. Ele pegou, deu uma olhada e notou que o livro tinha sido publicado há uns seis meses. Disse: mas saiu tem quase meio ano, isso não é mais lançamento.
Em redações, é um pensamento mais comum do que muita gente pode supor. Um filme, por exemplo, é visto como lançamento na semana em que chega ao cinema, não seis meses depois de estar em cartaz.
Argumentei que a lógica da literatura é outra: o que são seis meses de vida para uma obra demorou sabe-se lá quanto tempo para ser escrita e que, se bem-sucedida, talvez siga encontrando leitores ao longo de décadas?
Me parece razoável entendermos que um livro ainda pode ser visto como lançamento mesmo após vários meses, talvez mais de ano de sua publicação. É uma ideia que, sei, desafia o imediatismo em voga, contraria a lógica de muitas livrarias e provoca arrepios inclusive em editores que apostam num retorno rápido do investimento feito.
Tergiverso, pero no mucho. Mesmo os clássicos dependem de certos empurrões para ganharem a atenção de uma boa quantidade de leitores. Bem mais fácil ver gente dando atenção para algum nomão em caso de reedições, efemérides (vide o momento de Italo Calvino), indicações para vestibular ou algo do tipo do que espontaneamente, sem estímulo algum.
“Dom Quixote” pode ser lido a qualquer momento, claro, mas a quantidade de cavaleiros trotando sobre seu Rocinante na época do centenário de morte de Cervantes, quando pipocaram matérias e leituras coletivas da obra, era muito maior do que agora. (Deu vontade de relê-lo 😬)
O mercado vive de novidades, é da natureza da imprensa estar em busca de novidades e os leitores parecem cada vez mais querer ler o que seus colegas já estão lendo e validando. Mas não quer dizer que a roda precise sempre girar dessa forma.
Semana passada inaugurei um novo canto aqui na newsletter, o “Da Biblioteca”. A ideia é justamente compartilhar com vocês livros que vivem comigo e que estão longe dos holofotes. É um movimento para projetar alguma luz em obras não tão novas assim que valem ser lidas.
Respondendo de forma mais sucinta. Por que só se fazem debates literários e resenhas sobre lançamentos e autores clássicos? As resenhas entram na conta da imprensa novidadeira, enquanto os debates costumam olhar para onde pelo menos um punhado de pessoas já esteja olhando. Sim, o mercado exerce sua força para que as coisas sejam dessa forma.
E onde fica “o resto” da literatura que não se encaixa nesses grupos? Nas prateleiras, esperando por alguém que lhe dê atenção e se proponha a colocá-la em evidência. É um papel que, em certa escala, qualquer leitor pode desempenhar.
Tem perguntas sobre o meu trabalho? Deixe nos comentários, quem sabe não vira assunto que alguma newsletter futura.
Entrelinhas
Há algumas semanas foi ao ar um papo que bati com o colega Manuel da Costa Pinto para o Entrelinhas, programa de literatura da TV Cultura. Na pauta, como vocês já devem ter imaginado, “A Biblioteca no Fim do Túnel: Um Leitor em Seu Tempo”, livro que publiquei pela Arquipélago.
Deixo aqui o caminho para o programa completo. A entrevista comigo está na segunda metade. E vejam até o final, tem o Fernando nos créditos 🐕
Além do site da Arquipélago, “A Biblioteca no Fim do Túnel” já está disponível em diversas livrarias: da Vila, da Travessa, Martins Fontes, Amazon…
Podcasts
Também participei de dois podcasts para falar a respeito do livro.
No Rabiscos compartilhei diversos livros (e não só livros) que marcaram a minha caminhada:
No do Publishnews conversei sobre alguns outros aspectos do mercado editorial, como a qualidade média da produção literária:
Lenha na fogueira
“Tchekhov dizia que o objetivo de um artista não é responder a uma pergunta, mas formulá-la corretamente. Era isso o que eu queria com esse conto, para colocar nos ombros do leitor o fardo da resposta. Às vezes, nossos filhos pedem conselhos e o mais fácil é responder, mas o melhor é reforçar a pergunta, jogar lenha na fogueira”.
Pesco as aspas da entrevista que o estadunidense George Saunders concedeu ao Ruan de Sousa Gabriel para O Globo. Saunders é autor do romance “Lincoln no Limbo” e acaba de publicar por aqui “Dia da Libertação”, de contos (Companhia das Letras, tradução de Jorio Dauster).
Biografia de Aurora Venturini
Está chegando às livrarias argentinas “Esta No Soy Yo”, de Liliana Viola, uma biografia de Aurora Venturini, escritora que foi reconhecida já com seus 80 e tantos anos após vencer um prêmio importante por lá.
A história da premiação em si daria uma novela ou pelo menos um conto. Quando os jurados ainda se perguntavam quem seria a pessoa por trás do livro escrito, chegaram a desconfiar que se tratava de uma brincadeira de César Aira. Esse trecho da biografia publicado pelo Página 12 repassa o momento.
A Aurora sai aqui no Brasil pela Fósforo. Mariana Sanches traduziu para o português “As Primas”, romance que consagrou a escritora. Tem papo com a Mariana sobre literatura latino-americana contemporânea lá no podcast:
📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝 O que será de Jack, o Estripador, com a revelação de sua real identidade?
📝 Crise das livrarias: Saraiva de portas fechadas e dados preocupantes.
📝 Pode Tolstói acabar com um casamento?
🎙️ As muitas faces da literatura de Italo Calvino:
📝 O que faz uma cidade de leitores?
📝 Quando o Brasil vencerá o Nobel de Literatura?
📝 Bola cantada no Nobel de Literatura: ainda existe sigilo na Academia Sueca?
Bah se 6 meses já é muito tempo, imagina eu que considero um livro recente se tem 20 anos. Literatura é algo milenar, deveríamos ir mais devagar com ela. Mesmo aquela mais de massa (terror, fantasia, ficção científica...) 10 anos ainda considero recente. Um forma de tirar do limbo é fazer resenhas quando essas obras fecham 5, 10, 15, 20 anos de publicação.
Fiquei pensando que consumir um filme e um livro também tem suas particularidades! Se um filme tem duas horas e o tempo de lançamento é de uma semana, um livro que demora cinco vezes mais para ser consumido deveria ser lançamento por um tempo pelo menos cinco vezes maior do que uma semana, também :P Acho perfeitamente justo buscarmos essas obras que são "o resto"!