O que nos define?
É razoável que um gesto profundamente íntimo assombre a interpretação de tudo o que escrevemos?
Ando numa fase Anthony Bourdain. Depois de assistir ao documentário “Roadrunner”, decidi enfim ler “Cozinha Confidencial”1. O livro fez com que o cara passasse de chef de cozinha em ascensão para ícone pop, um astro da TV que viajava pelo mundo para comer e beber muito bem.
Já tinha lido algumas coisas de Bourdain. Honestamente, esperava mais de “Cozinha Confidencial”. Não encontrei pelas páginas o alardeado grande escritor. É um bom livro, cheio de passagens reveladoras e saborosas, escrito por alguém que viveu muito e não tinha medo de se expor. E tem um texto cativante, contudo, longe de ser brilhar, às vezes fica repetitivo ou forçado.
Bourdain foi maior do que a literatura de Bourdain, arrisco dizer.
Num café, a colega
disse preferir um outro do autor: “A Cook’s Tour”, publicado por aqui como “Em Busca do Prato Perfeito”. Está na minha lista. Como sigo bastante interessado em histórias ao redor de boas mesas, talvez não demore tanto tempo para providenciar meu exemplar.Escrevi sobre “Cozinha Confidencial” na minha coluna do UOL. Não faria sentido alardear em 2024 as inconfidências gastronômicas feitas por Bourdain num livro de duas décadas atrás. Ao procurar por caminhos interessantes para o meu texto, pesquei duas das sugestões que o autor dá àqueles que desejam virar chef.
Leia! Leia para não ser um ignorante orgulhoso, alertava Bourdain. Livros de história, de receitas, de negócios da área… Serve para tudo: leia! Para ele, "Na Pior em Paris e em Londres", de George Orwell, é imprescindível.
E destaquei uma aspa do cara como outro conselho: "Encare as coisas com senso de humor. Você vai precisar".
Leitores estranharam. Alguns me escreveram para apontar que o próprio Bourdain, uma pena, não teria esse senso de humor que recomendava aos outros. Será?
No meio de 2018, Bourdain rodava a Alsácia. É uma região francesa repleta de belas montanhas, vinhedos de onde saem alguns dos melhores rieslings do mundo, castelinhos e cidades feitas de ruas charmosas e casas encantadoras. Tudo por ali parece estar abarrotado de história.
O chef, escritor e apresentador estava hospedado num dos melhores hotéis desse canto do mundo moldado para transmitir a sensação de acolhimento e calmaria. Nesse cenário idílico, no dia 8 de junho Anthony Bourdain colocou um ponto final na própria vida. Ele tinha 61 anos.
O cara passava por problemas. A vida financeira andava tumultuada, as polpudas contas secavam. Vivia um amor intenso e nada tranquilo. Lidava com a depressão havia anos. Milhões mundo afora invejavam a vida que Bourdain apresentava pela TV, mas a realidade é sempre mais dramática e contraditória do que as aparências midiáticas.
É esse fim de Bourdain que está por trás da desconfiança sobre o senso de humor do escritor.
Mas, poxa, é justo transformar seu ato final na única chave possível para avaliarmos o que ele fez ao longo de toda a carreira? É razoável enxergarmos incongruência num conselho dado em 2000, data da publicação original do livro, por conta de um triste e violento gesto cometido contra si 18 anos depois?
É legítimo que um elemento desses - grave, crucial - assombre e mude a compreensão sobre toda a obra, toda a biografia? Bourdain merece ser encarado sempre pela ótica de alguém que, já entrando na velhice, tirou a própria vida, como se tudo o que fez em sua caminhada meio que determinasse ou estivesse subordinado ao derradeiro ato?
Impossível saber o que Bourdain fez e pensou em seus últimos momentos. Sei, contudo, que ele soube usar o próprio senso de humor em inúmeras oportunidades ao longo da vida. A maneira como olha e expõe a carreira em seus livros denota isso.
Não era um humor fácil, um humor limpinho. Era um humor ácido, sarcástico, corrosivo. O humor de alguém capaz de tomar umas biritas na piscina do hotel enquanto helicópteros parrudos sobrevoam sua cabeça e a guerra explode a poucas quadras dali, como vemos numa das cenas de “Roadrunner”.
Mudamos. Variamos ao longo de um dia, de um ano, de uma vida. Nem sempre nos portamos da maneira ideal, nem sempre agimos da forma mais adequada. Às vezes frustramos as expectativas que criamos para nós mesmos. Faz parte.
Só não me parece justo que um gesto profundamente íntimo se torne o único prisma usado para avaliar tudo o que fizemos, assombre a interpretação de tudo o que escrevemos.
O que pensam disso?
🎉Encontro para celebrar A Biblioteca
Como vocês sabem, “A Biblioteca no Fim do Túnel: Um Leitor em Seu Tempo”, livro que publiquei pela Arquipélago, acaba de completar 1 ano.
Para comemorar a data, estarei no Galpão Comum, na Santa Cecília, na tarde de sábado, dia 31 de agosto.
Além de encontrar leitores, baterei um papo com João Varella, jornalista, livreiro, editor da Lote 42…
Meu livro estará à venda por lá e a Banca Tatuí promete levar também uma seleção de títulos de literatura latino-americana contemporânea e futebol.
Garanto uma garrafa de cachaça para compartilharmos!
O papo começará às 15h. O Galpão Comum fica na rua Barão de Tatuí, 509, perto do metrô Santa Cecília.
Apareçam!
Um pouco do que já falaram sobre “A Biblioteca no Fim do Túnel”:
Clube de Leitura P5
Os próximos encontros do Clube de Leitura da Página Cinco, exclusivo para os assinantes que pagam pela newsletter, serão em setembro e novembro. Os livros já estão definidos:
Em setembro leremos “Diorama”, da Carol Bensimon (Companhia das Letras).
Em novembro será a vez de “Cidadã de Segunda Classe”, da nigeriana Buchi Emecheta (Dublinense).
Aqui há mais o informações sobre o Clube de Leitura da Página Cinco.
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Companhia de Mesa, tradução de Beth Vieira e Alexandre Boide
É melhor deixar reduções só pra cozinha, mesmo :)
Recomendo a leitura de Blood, Bones, & Butter: the inadvertent education of a reluctant chef, de Gabrielle Hamilton. O melhor Chef memoir que eu já li. O proprio Bourdain disse que é "simply the best memoir by a chef ever."