Mais um desafio: formar bons leitores
E fazer isso sem cair em discursos arrogantes ou elitistas.
No último final de semana estive em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, para o Intralinhas, residência criativa pensada para a formação de mediadores de leitura. Fiz uma mistura de palestra e bate-papo sobre minha atuação em diversas posições nesse meio de campo entre livros e leitores.
Encontros assim são ótimos para trocarmos ideias com colegas e matutarmos a respeito de aspectos do trabalho.
Quando falamos em formação de leitores, quase sempre a primeira coisa que surge na pauta são crianças e jovens. Como atraí-los para o universo da leitura? É algo fundamental, claro, mas precisamos ir além.
Duas outras questões andam pela minha cabeça: como atrair os adultos para o mundo dos livros? E como melhorar o nível de leitura daqueles que já são leitores?
Outro dia trouxe aqui a história de Luiz Alberto Mendes. Ele descobriu a literatura na cadeia e teve a vida transformada pelos livros. É um exemplo de como leitores podem ser forjados em qualquer fase da vida.
Mais fácil quando o hábito vem da infância, sei disso. Mas não devemos ignorar milhões de brasileiros que, já marmanjos, podem sim se encantar pela leitura enquanto criam filhos, se apertam no ônibus, brigam com planos de saúde…
Pesquisas indicam: muita gente se distancia dos livros quando deixa a escola e passa a se preocupar com chatices da vida adulta. Temos aí outro ponto: se liam lá atrás, então deve haver algum atalho para reaproximar da leitura.
E é preciso ter ambição. Não se satisfazer com qualquer tipo de leitura, trabalhar para que tenhamos cada vez mais pessoas capazes de compreender textos complexos, textos que pedem um leitor realmente participativo.
O escritor Henrique Rodrigues escreveu sobre recentes casos de censura que rolaram na área (inclusive contra ele) e sublinhou a importância de pensarmos, fomentarmos e aprimorarmos a mediação de leitura. Também reconheceu o quanto conceitos artísticos estão distantes de uma camada enorme da população:
“Precisamos aceitar que uma literatura densa e mais questionadora já não faz parte do cotidiano de pessoas de fora da bolha, e que, por isso, podem encarar com todo tipo de preconceito essa manifestação artística. Bons livros são escritos com pesquisa, técnica, intuição e, sobretudo, a necessidade de comunicar algo sobre o nosso mundo por meio de manifestações simbólicas da palavra. Isso pode ser óbvio para nós, mas me parece que circulam muitas ideias distorcidas sobre o que é literatura.”
Há alguns meses escrevi sobre escritores que parecem perder a confiança nos leitores por conta de um pessoal incapaz (pelo menos até aqui) de entender como a literatura funciona. Gente que espera textos bem mastigadinhos ou melindra com personagens de atitudes desprezíveis.
Nesta semana mesmo publiquei uma coluna com avaliações de “Ensaio Sobre a Cegueira” deixadas na Amazon. Há quem reclame da edição: faltaria revisão, a pontuação estaria errada, Saramago precisaria ser vertido para o nosso português…
As pérolas divertem, mas também preocupam. Mesmo quem se dispõe a ler um Saramago muitas vezes passa longe de ter ferramentas necessárias para entendê-lo (e aproveitá-lo) minimamente.
Aprimorar nosso repertório e compreender as virtudes de diferentes tipos de textos são elementos fundamentais para descobrir do que gostamos de verdade. E não há problema algum em, lido e entendido, dizer que não é isso que curte e ir atrás de outras histórias, outras literaturas.
Precisamos de mais leitores. Mas também precisamos pensar em maneiras para melhorar o nível de leitura de muita gente que já lê. E há um desafio extra aí: fazer isso sem cair em discursos e práticas arrogantes ou elitistas.
Clube de Leitura Página Cinco
Estão definidos os livros que serão discutidos nos próximos encontros do Clube de Leitura da Página Cinco.
No dia 27 de maio, às 20h, nos reuniremos via Meet para conversar sobre Saturno Translada, de Lucas Lazzaretti (7 Letras).
Já em julho, em data ainda a ser decidida, o papo será sobre Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi (Estação Liberdade).
Oficina de Crônicas e Ensaios
Uma boa novidade.
Entre junho e julho irei ministrar uma oficina na LabPub sobre Crônicas e Ensaios. A ideia é misturar teoria e prática para que os participantes tenham uma boa noção de como trabalhar com esses gêneros.
As aulas serão online e ao vivo. Acontecerão às quartas e sextas, das 19h às 21h10. Aqui há mais informações.
Grandes finais
É comum vermos listas com grandes inícios da história da literatura. Outro dia eu mesmo cometi uma relação do tipo. Aproveitei para misturar Juan Rulfo com Carolina Maria de Jesus, Sara Gallardo com Tolstói, Cormac McCarthy com Annie Ernaux, Murilo Rubião com Albert Camus.
Julián Fuks teve uma boa sacada ao olhar para a outra ponta dessa história e montar uma coleção de frases finais. A minha preferida está lá: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
Você tem algum final favorito? Responda nos comentários.
Os cabelos de Saramago
“No escritório de José Saramago há alguns retratos seus – sozinho ou acompanhado da esposa Pilar del Río – feitos pelo fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. Em quase todas as imagens, o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1998 aparece com os cabelos desgrenhados tal qual um pinheiro canário. Venta muito em Lanzarote”
Na newsletter Passageiro, Matheus de Souza conta como foi visitar a casa onde José Saramago passou a fase final (e prolífica) de sua vida, nas Ilhas Canárias.
McCarthy por Daniel Galera
Em maio do ano passado, publiquei no podcast um papo com o escritor Daniel Galera sobre a obra de Cormac McCarthy. Na ocasião, ele falou sobre um trabalho em que estava metido: a tradução de “Suttree”, livro do estadunidense inédito por aqui.
A coisa andou bem e Daniel compartilhou em sua newsletter um trecho do texto que em breve entregará para a Companhia das Letras. Um pedacinho:
“E submergem no tumulto sombrio no salão fumoso que é uma terra de ninguém cheia de bêbados de aparência mortífera cambaleando com olhos injetados e fedendo a uísque caseiro. Um rebuliço de pés, a pancada surda dos punhos. O longo e infindável estilhaçar de vidros e cadeiras e sobre as cabeças o silvo intermitente de garrafas de uísque varando o recinto como morteiros até explodir nas paredes de pedra. Uma vaga de corpos passou por cima de Suttree. Levantou a muito custo”.
Verissimo, Clarice e Candido
Temporada cinematográfica de grandes nomes da literatura.
Chegou ou está para chegar aos cinemas uma adaptação de “A Paixão Segundo G. H.”, de Clarice Lispector, um documentário sobre os já remotos 80 anos de Luis Fernando Verissimo (vi e escrevi a respeito na coluna) e um outro documentário centrado no crítico literário Antonio Candido.
Alguém já viu algum dos filmes? O que achou?
Sobre “Antonio Candido, Anotações Finais”, Luiz Zanin escreveu:
“O filme se vale do recurso de um narrador póstumo, à maneira de um Brás Cubas no romance de Machado de Assis - ‘Dia 12 de maio de 2017, eu morri’, começa o escritor, na voz do ator Matheus Nachtergaele. Então segue-se um, por assim dizer, fluxo de consciência, palavras transcritas dos últimos cadernos de Candido, postas no papel com letra caprichada e firme, apesar da idade avançada”.
Também tem papo sobre o crítico no podcast:
📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝 A lua é Flicts e feliz é o Menino Maluquinho. Valeu, Ziraldo!
📝 Uma chance para tomar cerveja e ver futebol com Luis Fernando Verissimo
📝 A luta pela sobrevivência num deserto assolado pela guerra: resenha de “Fúria”, de Clyo Mendoza
📝 José Saramago não será revisado. Dante Alighieri não virá para a conversa
O melhor último paragrafo da história da literatura é o do conto "A causa secreta" Machado de Assis.
"Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas
então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam
conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e
irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo
essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente
longa." Perfeito. Evidentemente é necessário ler o conto para entender o sublime do paragrafo.
“Meu Deus! Um minuto inteiro de deleite! Por acaso isso não basta para toda uma vida humana?..”
O que mais me marcou! Dostoiévski - Noites Brancas