“Sobrevivi graças aos livros”
Preso, Luiz Alberto Mendes teve a vida transformada após conhecer Os Miseráveis
Apenas durante a noite, quando as luzes do presídio se apagavam indicando que os guardas estavam distantes, que Luiz Alberto Mendes podia conversar. Não que fosse uma tarefa simples. Precisava esvaziar o sanitário e esticar o ouvido ou centralizar a boca na saída do esgoto. Só assim para que ouvisse ou fizesse sua voz chegar ao colega isolado em outra solitária.
Num dia dos muitos meses em que passou afastado dos demais presos, alguém do outro lado da latrina que servia de telefone perguntou se Luiz conhecia Jean Valjean. Não, não fazia ideia de quem era o sujeito.
Então o camarada começou a lhe contar a história do francês pobre que tenta encontrar um rumo para a vida após ser preso por roubar um pão. A cada dia Luiz escutava uma parte de “Os Miseráveis”, de Victor Hugo. Ficou maravilhado.
Luiz tinha seus 20 e poucos anos quando, na cadeia, descobriu a literatura.
Desde moleque que vinha colecionando crimes e condenações. De tanto ser surrado pelo pai, saiu de casa aos 11 anos. Morou na rua e cresceu na delinquência, como costumava dizer. Com latrocínio e assaltos nas costas, chegou a ser condenado a 133 anos de cana. Pensou que jamais deixaria a prisão.
O clássico de Hugo, no entanto, mostrou a Luiz que havia todo um universo à disposição mesmo estando confinado. Uma quantidade imensa de histórias e de realidades que poderia conhecer a partir de sua cela. Virou um leitor incansável.
Passava oito, dez, doze horas do dia metido nos livros que recebia. Depois de Victor Hugo, manteve o alto nível. Vieram Guy de Maupassant, Stendhal e Balzac. Dostoiévski e Tolstói. Fitzgerald, Hemingway, Norman Mailer, Henry Miller, Virginia Woolf…
Transformou-se. Fez amizade com outros presos que também liam e estudavam. Montaram uma pequena cena cultural no cárcere. Ideias eram discutidas e os melhores livros passavam de mão em mão. Sem professores, mas com suas próprias experiências, trocavam impressões sobre a literatura e a vida.
Luiz costumava dizer que quando um detento começa a pegar no livro, quem ganha é a sociedade. Virou prova disso. Foi o primeiro presidiário a entrar numa faculdade, isso em 1982. Ainda no presídio virou colunista da Trip e publicou sua obra de estreia, “Memórias de um Sobrevivente”. Outras viriam.
Como, em 2004, veio enfim a liberdade. Quando contava sua história por aí, dizia que a leitura de Victor Hugo ficou aquém das expectativas. A versão que escutou de “Os Miseráveis” da boca de uma colega de presídio, pelo esgoto, era mais interessante do que a escrita pelo francês.
Luiz Alberto Mendes morreu em 2020, aos 68 anos. Em 2015, num depoimento para a Folha, escreveu: “Sobrevivi graças aos livros. Na prisão, descobri que não se morre só da vida. Você pode morrer dos seus sentimentos, e o sentimento do malandro está na sola do pé, para ser pisado em cima”.
Censuras
A história de Luiz Alberto Mendes ecoou pela minha cabeça nesses últimos dias. Me lembrei dela por conta dos livros barrados em presídios de Minas Gerais. Bíblia e autoajuda entram, a literatura fica de fora, como denunciou a Pública.
Há uma nova ofensiva contra a literatura. Perseguições a “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, e gente graúda da instituição atacando “Outono de Carne Estranha”, de Airton Souza, o próprio vencedor do Prêmio Sesc, são outros casos recentes.
Escrevi a respeito na coluna do Uol. Está aqui e aqui. Também recomendo esse episódio do Rabiscos:
E essa edição da newsletter do Eric Novello:
Clube de Leitura da Página Cinco
Temos a data do primeiro encontro do Clube de Leitura da Página Cinco, exclusivo para assinantes que pagam pela newsletter.
No dia 27 de março, última quarta-feira do mês, às 20h, via Meet, conversaremos sobre “O Invencível Verão de Liliana”, da mexicana Cristina Rivera Garza (Autêntica Contemporânea, tradução de Silvia Massimini Felix).
Atrás de uma editora?
“O mais importante, na realidade, é uma boa sinopse. Se você tiver dificuldade com isso, peça para seus amigos ou leitores beta descreverem seu livro pra você. Note quais são os pontos que mais chamaram atenção deles, e inclua-os na sua sinopse. E não se preocupe muito em nos poupar de spoilers”.
Como chamar a atenção de um editor para o seu livro? A Diana Passy, com 15 anos de caminhada nessa área, dá diversas dicas:
Distância de Resgate
“Sem conclusões fáceis (lembre-se: no realismo mágico não se explica, teme-se apenas) e com uma arquitetura ambiciosa, ‘Distância de Resgate’ é uma obra importante para pensarmos hoje a América Latina, onde os desmandos políticos se travestem num temor que se acredita irracional e atávico. ”
No Estado de Minas, Schneider Carpeggiani escreve sobre “Distância de Resgate”, da excelente Samanta Schweblin, novela que volta aos leitores brasileiros em edição da Fósforo (tradução de Joca Reiners Terron).
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🎙️ Por uma literatura que jamais subestime o leitor - papo com Jim Anotsu:
a literatura é perigosíssima, desperta a consciência.
Incrível. Parece mesmo não haver inferno que não possa ser refrescado quando entra um livro nele.