A pessoa vê o filme ou ouve alguém falar bem do livro. Se interessa pela história e vai atrás de sua versão literária. Compra um exemplar pela internet. Dias depois, enfim começa a leitura. Catapimba! Dá com a fuça no estilo de José Saramago.
Avaliações de "Ensaio Sobre a Cegueira" publicadas na Amazon voltaram a divertir leitores. De tempos em tempos alguém pesca as pérolas dedicadas a esse e a outros livros no site da multinacional.
Há quem diga que a história é boa, mas impossível de ler. Reclamam principalmente da edição. Onde já se viu entregar um texto com poucos parágrafos, pontuação esquisita, diálogos que não estão demarcados, uma bagunça incompreensível ao bater dos olhos? Espero que os erros sejam corrigidos logo, comenta alguém. Há quem reclame de a obra ser vendida com o português de Portugal.
Tem seu humor, mas também mostra o quanto pecamos na formação de leitores.
A maior parte do povo não lê, ainda mais literatura. E, dentre os que leem e chegam a se interessar por um Saramago, outros bons tantos parecem não ter habilidades para compreender o escritor. Ao mesmo tempo, sentem-se confortáveis e confiantes para espalhar bobagens pela internet. Formar leitores é um desafio, aprimorar a capacidade de leitura de quem já lê é outro.
Não, Saramago não precisa de revisão mais atenta nem de edição que domestique o seu texto. Também não precisa ser adaptado para a sua língua. É bem portuguesa, aliás, essa ideia de verter o idioma para o próprio idioma, como se alguém que fala o português de um canto não pudesse usar o cérebro (e o dicionário, o google...) para arredondar a compreensão do português alheio.
É preciso se dedicar um tanto para dominar o estilo do autor que lutou bastante com a própria criatura para levar à página em branco a oralidade que sempre lhe encantou. Normal o leitor demorar para sacar a lógica da literatura de Saramago, se familiarizar com o alternar das vozes. E é apaixonante quando a leitura encaixa e passa a fluir com clareza, ainda que sempre demande atenção.
O humor literário involuntário passa por um bom momento. Outro dia circulou o print de alguém com um pedido peculiar. Por que não convidar Dante Alighieri para papear com os integrantes de um clube de leitura? Seria de grande valia o autor apresentar seu olhar sobre o clássico que o eternizou.
Questionaria essa fé no autor como intérprete de si mesmo se não estivesse estupefato com a sugestão de ressuscitar o sujeito que escreveu "A Divina Comédia" e morreu em 1321, coisa aí de 700 anos atrás.
Pode ser falso? Tudo pode ser falso na internet. Mas é crível.
Quando gente da literatura senta para tomar umas, não é raro que, após esvaziar meia dúzia de garrafas, alguém lembre um causo.
Certa vez, a curadoria de um evento mandou uma mensagem aberta pelo Facebook convidando Paulo Leminski para aparecer no festival. Quem cuida da página do poeta respondeu: Gostaria muito de ir, mas, infelizmente, eu já morri. Duro, né?
E Paulo, morto desde 1989, não deu mesmo as caras.
Tem algum causo para compartilhar com a gente? Deixe nos comentários!
*Texto publicado originalmente na coluna do Uol em 17 de abril de 2024.
Clube de Leitura P5
Os próximos livros do Clube de Leitura da Página Cinco, exclusivo para os assinantes que pagam pela newsletter:
No dia 25 de julho, às 20h, via Meet, conversaremos sobre “Afirma Pereira”, de Antonio Tabucchi (Estação Liberdade).
Em setembro leremos “Diorama”, da Carol Bensimon (Companhia das Letras).
Em novembro será a vez de “Cidadã de Segunda Classe”, da nigeriana Buchi Emecheta (Dublinense).
Livros importantes
“Com a urgência de abordar questões sociais que precisam mesmo ser abordadas – como o racismo, a pauta ambiental e a violência contra as mulheres – a galera está perdendo a mão e reproduzindo estereótipos, caindo no mais do mesmo, em vez de aprofundar a discussão. Para atingir esse público leitor que adora uma literatura limpinha, evita a polêmica. Para agradar aos que estão buscando heróis inquestionáveis, criam personagens planos, que fazem apenas o que é esperado deles”.
escreve sobre os “livros importantes” na Tristezas de Estimação:Dragões
“Em 13 de maio de 1572, quando Ugo Buoncompagni retornava para sua terra natal para se tornar Papa Gregório XIII, um tenebroso dragão apareceu em uma área rural perto de Bologna, um presságio do tempos terríveis que viriam. Logo essa notícia se espalhou e foi organizado um grupo para capturar o animal, que foi levado para dentro dos muros da cidade.”
escreve sobre dragões, essas criaturas fascinantes, na Paulatinamente:Goool da Alemanha
“Minha gente, era 2013. O hino nacional, a camisa amarela, ainda pertenciam a todo brasileiro. Historiadores vão dizer: não foi naquele ano que a desgraça toda desandou? Pode ser. Mas ali foi antes de desabarem outras e bem maiores derrotas nessa vida — ainda pior do que o 7 a 1 na Copa de 2014, bem pior que no futebol”.
O escritor André Argolo lembra de quando, em 2013, o Pindorama FC, time feito de autores brasileiros, tomou uma levada de 9X1 de seus colegas alemães. A crônica está no Jornal Rascunho.
André também fez um documentário sobre a peleja literária:
📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝 Ariana Harwicz contra os artistas que trabalham para agradar - resenha de “O Ruído de uma Época” (
)📝 O horror provocado pelas caraminholas da igreja: resenha de “Catedrais”, de Claudia Piñeiro (Primavera)
📝 Hilda Hilst recomendava: leia Chomsky para deixar de ser besta
📝 Uma feirona do livro em meio à sombra medonha que não para de crescer
🎙️ Como lidar com os clássicos: papo com Amara Moira:
Como diz o Sakamoto, o problema do Brasil é a falta de amor e a interpretação de texto. Uma coisa é a história, outra é como ela é narrada. Infelizmente, para os que gostam de tudo mastigadinho e não conhecem nem figuras de linguagem, estilo, Saramago, o autor, pode parecer literatura estrangeira.
uma vez um colega de trabalho italiano me disse que aprenderia português só para ler saramago no original. o comentário me pegou muito de surpresa, mas não deveria.
muitas vezes penso nisso e penso no impacto da forma, no quanto é necessário apontar essas peculiaridades para novos leitores, sabe.
eu também tenho pensado muito sobre isso em Paulo Coelho nos últimos anos (mas numa direção contrária) e o quanto desconfio que o pecado do homem para os intelectuais brasileiros tem muito a ver com a acessbilidade da linguagem também - aquela velha falácia sobre as traduções serem melhores etc para justificar o sucesso dele fora do Brasil.
enfim. queria taguear a Ana Rsuche aqui no comentário porque esse é tópico frequente nas nossas conversas hehe
adorei as observações. obrigada pelo texto, Rodrigo.