Uma história que nunca compartilhei com os leitores.
Escrevo sobre livros para o UOL desde 2014. Minha coluna por lá existe desde 2015. Por conta desse trabalho, acompanhei de perto a ascensão da extrema direita no país. Em diversos momentos busquei alertar para como o monstro ganhava força: livros perseguidos, exposições canceladas, artistas atacados…
Quando relacionava livros com o fascismo galopante, a caixa de comentários da Página Cinco confirmava como os tempos eram brutos. Porrada virtual doía um pouco no começo, mas depois que calejei aprendi a filtrar o que me servia e a desprezar o resto, rir de certas sandices.
Só que, sabemos bem, esse caldo que engrossa na internet uma hora transborda para as ruas. Os diversos episódios de violência diretamente ligados à política que vimos nos últimos anos estão aí para comprovar que o mundo real é um só.
Em 2018 a Festa Literária Internacional de Maringá me convidou para mediar algumas mesas. Se a memória não me trai, eram papos com João Silvério Trevisan, Angélica Freitas e Eucanaã Ferraz. Foram conversas tranquilas.
Mas também cabia a mim tocar um papo que já vinha provocando barulho na cidade há algum tempo. Diversas mobilizações de gente ligada a movimentos de direita protestavam contra a presença de Márcia Tiburi na Flim. Alguns prometiam que aquele encontro não aconteceria de forma alguma.
Com cerca de 400 mil habitantes, os eleitores de Maringá tinham dado 60,9% dos votos para Jair Bolsonaro no primeiro turno. O número chegaria a 75,8% no segundo turno, a dali algumas semanas. Autora de livros como “Como Conversar com um Fascista” (Record), Márcia Tiburi, por outro lado, havia acabado de ser candidata ao governo do Rio de Janeiro pelo PT.
Protestos, claro, fazem parte da democracia. Mas o que rolou no dia da conversa com Márcia simboliza bem o estado do país naquele momento. Quando cheguei no lugar do papo, fiquei surpreso com a quantidade de seguranças que rondavam a estrutura do evento.
Fui barrado na entrada do camarim. Depois, identificado como o mediador, ainda deram uma olhada na minha mochila antes de me liberarem. Lá dentro, o tempo todo passava alguém da organização trazendo notícias. As ameaças dos dias anteriores tinham se intensificado.
Temerosos de que alguém pudesse fazer algo mais grave (com bomba, com arma branca, de fogo…), o público só poderia entrar no espaço onde a mesa aconteceria após passar por um detector de metal. Não me recordo se todos foram revistados também. Era um clima bastante estranho, pesado. E tudo isso para uma conversa sobre livros.
Momentos que antecedem as conversas em festas literárias costumam ser de descontração, de troca de ideias sobre livros, sobre amenidades, sobre o que fazer na cidade, sobre a vida. Ali, não.
Num ambiente tomado pela apreensão, só se falava de política. Dos absurdos que o Brasil vinha vivendo. Das eleições. E, claro, da incerteza de como seria a mesa naquele cenário.
O papo começou com mais de uma hora de atraso. Num palco centralizado, eu e Márcia estávamos cercados pelo público e por seguranças. Moleques esfregavam o celular quase que na nossa cara, gravavam tudo o que dizíamos. Certamente esperavam por alguma fagulha que pudesse provocar escândalo nas redes sociais - uma defesa dos direitos humanos, por exemplo.
Havia brucutus, mas também havia muita gente interessada no que a autora tinha a dizer. Os estúpidos fizeram barulho e provocaram receio, mas as pessoas interessadas na literatura eram ampla maioria. A conversa começou tensa, mas fluiu bem. No ano seguinte Márcia decidiu deixar o país. O que viveu em Maringá foi decisivo para a escolha, parece.
Lembro a história porque pela primeira vez voltei a Maringá, cidade cheia de bons leitores, após esse evento marcante. Estive por lá novamente por conta da Flim.
Bati um papo sobre a vida e o trabalho com os colegas Rogério Pereira, do Jornal Rascunho, e Victor Simião, jornalista que falava de livros na CBN local e hoje é secretário de Cultura de Maringá. Mais do que uma boa conversa, foi ótimo encontrar a cidade com outro clima, voltar de lá satisfeito, não preocupado.
A organização acertou a mão ao aproximar a Flim das escolas municipais. O papo aconteceu às 9 da manhã de uma sexta-feira e estava lotado. A plateia era formada principalmente por estudantes que, parece, tinham algum interesse no que falávamos. Confio que algo sempre fica na cabeça de um e de outro. Depois, pelos corredores da festa, muita gente passeando, tirando fotos, procurando por livros.
Sequer reparei se havia seguranças. Creio que sim, eventos do tipo precisam cumprir certos protocolos, mas não que precisasse. Não existia traço algum de animosidade no ar. Não enquanto estive por lá, pelos lugares por onde passei, pelo menos.
Que momentos como aquele que vivi ao lado de Márcia fiquem mesmo no passado.
Biló, Wainer e Pellanda
No sábado, dia 21, estarei em Santos para conversar com Gabriela Biló e João Wainer. O papo será às 15h, no Teatro Guarany, e faz parte da programação da Tarrafa Literária. O nome da mesa: “A imagem que não me sai da cabeça”.
Já na sexta, dia 27, a conversa será com Luís Henrique Pellanda, que está lançando o livro de contos “O Caçador Chegou Tarde” (Maralto). Será na Livraria da Travessa de Pinheiros, em São Paulo, e começará às 19h.
Apareçam!
A Biblioteca no Fim do Túnel
“A Biblioteca no Fim do Túnel: Um Leitor em Seu Tempo”, livro que acabo de lançar pela Arquipélago, segue chegando aos leitores e rendendo boas conversas. Aqui o papo que bati com o colega Gustavo Machado para o Capítulo Zero:
Além do site da Arquipélago, “A Biblioteca no Fim do Túnel” já está disponível em diversas livrarias: da Vila, da Travessa, Martins Fontes, Amazon…
Conversas entre leitores e personagens
Autora de livros como “A Fórmula Preferida do Professor” e “O Museu do Silêncio” (Estação Liberdade), a japonesa Yoko Ogawa é uma autora que indico sempre que posso.
Ela deu uma longa entrevista para o Paulo Krauss. Saiu na edição deste mês do jornal Rascunho. Destaco um trecho:
“Não quero guiar o leitor dentro do romance, as personagens e os leitores é que irão se confrontar cara a cara, um a um, em conversas silenciosas, e que possam encontrar as próprias verdades”.
A escolha do Nobel
No começo do mês a Academia Sueca anunciou o vencedor do Nobel de Literatura deste ano, o norueguês Jon Fosse. Li e escrevi sobre dois livros dele bem frescos no Brasil: “É a Ales” (Companhia das Letras) e “Brancura” (Fósforo).
Sempre me perguntam como funciona a escolha do premiado, quais são os critérios adotados pela Academia, quem são os autores que levam em conta. É tudo muito nebuloso e supostamente sigiloso, mas esse texto do New York Times nos dá uma ideia das movimentações que acontecem antes da escolha.
Valores críticos
“Resta a pergunta: a quem interessa o declínio da crítica de arte? Aos artistas antes patrulhados por ela? Talvez, mas só aos cabotinos. Quem lucra diretamente com a ausência de valores críticos na arte são aqueles que transformam a arte em valores monetários.”
É um artigo de Rafael Cardoso focado nas artes visuais, mas outras artes, dentre elas a literatura, também vivem essa enrascada.
☕Um café
Gostei de conhecer a The Kingdom, cafeteria de Maringá que fica bem perto do estádio da cidade, onde rolou a Flim.
Trouxe na mala um pacotinho do Moka - Nibs de Cacau, feito com grãos de catuaí vermelho plantados no lado mineiro da Serra do Caparaó e torrados pela própria cafeteria. Tem uma pegada que puxa pro chocolate amargo.
Moquinhas costumam fazer sucesso por aqui.
📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝 O grande mundo de Drummond e o encontro do poeta com Ziraldo
📝 A solidão e os mistério de Jon Fosse: resenha dos livros do vencedor do Nobel de Literatura
🎙️ A vida entre o lápis e a enxada: papo com Rogério Pereira:
📝 Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo te convidaram para almoçar? Fuja!
📝 A Queda da Casa de Usher, o horror de Allan Poe e os caminhos dos livros
Muito bom! Na FLIM melhorou, mas a onda da extrema-direita continua forte.
Uma cultura que milita contra os livros também milita contra o país.
Essa onda ainda não passou por completo, mas parece que anda mais fraca. Que bom!