Quando uma leitura prescreve?
Se há leituras que não se esgotam, também há o movimento inverso
A dúvida bateu durante uma aula.
Falava sobre “Reze Pelas Mulheres Roubadas”, da mexicana meio estadunidense Jennifer Clement. É um romance sobre a violência contra mulheres, assunto bastante presente na literatura latino-americana contemporânea.
Jennifer é jornalista e fez uma série de apurações para o trabalho. Na hora da escrita, optou pela ficção. Em muitos casos só conseguimos mesmo nos aproximar da realidade graças a certas liberdades criativas.
O livro causa impacto já em suas linhas iniciais, com garotinhas disfarçadas de meninos para que não sejam violentadas ainda crianças por bandidos. Era um título que estava bem colocado na sequência da aula, entre o deserto macabro criado por Bolaño em “2666” e as marcas deixadas por um feminicídio, assunto de “O Invencível Verão de Liliana”, de Cristina Rivera Garza.
Só que enquanto falava de “Reze Pelas Mulheres Roubadas” um sinal soou na minha cabeça. Será que a leitura que fiz do livro segue válida? O Rodrigo de 2024 endossaria a leitura feita pelo Rodrigo de 2015, data em que o título saiu no Brasil pela Rocco, com tradução de Léa Viveiros de Castro?
Fiz uma piada qualquer. Disse que se alguém lesse e não gostasse, que reclamasse com o Rodrigo de 9 anos atrás, não com este de cabelo rareado e barba um tanto esbranquiçada. Mas fiquei com isso na cabeça.
Minha maior desconfiança não recai sobre a obra, mas sobre a capacidade crítica que eu tinha quando foi lida. É de se esperar que ao longo de quase dez anos mergulhado em livros o meu olhar tenha passado por transformações significativas. Certas mudanças na forma de encarar e avaliar a literatura fazem parte desse processo.
Em outras ocasiões escrevi sobre leituras que nunca acabam, sobre livros que permanecem crescendo em nosso imaginário mesmo após encerrarmos a última página. Sempre cito “Vidas Secas”, de Graciliano, e “Butcher’s Crossing”, de John Williams, como exemplos. “Saturno Translada”, de Lucas Lazzaretti, é um mais recente que ecoa há alguns meses em meu imaginário.
O livro de Jennifer desencadeou a reflexão por outra perspectiva. Me parece evidente: se há leituras que não se esgotam, também há o movimento inverso. Não escrevo para descartar “Reze Pelas Mulheres Roubadas”. Teria que relê-lo para ter um parecer sobre esse embate entre o Rodrigo de 36 anos com o Rodrigo de 27, mas deixo perguntas.
Quando uma leitura prescreve? Quando aquilo que pensamos sobre um livro envelhece mal perante nós mesmos, definha com o passar do tempo? Quanto que essa tensão diz não sobre a obra, mas a respeito do nosso próprio amadurecimento enquanto leitor?
Já se fizeram questionamentos do tipo?
Clube de Leitura da Página Cinco
Temos a data do primeiro encontro do Clube de Leitura da Página Cinco, exclusivo para assinantes que pagam pela newsletter.
No dia 27 de março, última quarta-feira do mês, às 20h, via Meet, conversaremos sobre “O Invencível Verão de Liliana”, da mexicana Cristina Rivera Garza (Autêntica Contemporânea, tradução de Silvia Massimini Felix).
Aqui a minha resenha do livro.
Biblioteca de textos irresistíveis
"Rodrigo Casarin traz textos irresistíveis, escritos por alguém que tem linguagem fluida e bem definida e capacidade para transformar relatos pessoais em histórias universais".
O escritor Bruno Inácio foi bastante generoso ao resenhar “A Biblioteca no Fim do Túnel - Um Leitor em Seu Tempo” para o jornal Rascunho.
Além do site da Arquipélago, “A Biblioteca no Fim do Túnel” já está disponível em diversas livrarias: da Vila, da Travessa, Martins Fontes, Amazon…
Mariana Enriquez e os médiuns de cachorros
Autora dos contos de “As Coisas que Perdemos no Fogo” e “Os Perigos de Fumar na Cama” e dos romances “Este é o Mar” e “Nossa Parte de Noite”, todos publicados pela Intrínseca, a argentina Mariana Enriquez tem uma imensidão de fãs no Brasil.
Vão gostar de saber que tem livro novo da autora pintando nas livrarias dos países que falam espanhol: o volume de contos “Un Lugar Soleado Para Gente Sombría” (Anagrama).
Mariana fala a respeito do livro, de fantasmas, do terror, da pandemia, de mortes (inclusive do jornalismo) e de médiuns de cachorros que chegaram à política nesta entrevista para a Página 12.
Oceanos
Alô, alô, editores e escritores!
Estão abertas as inscrições para a edição de 2024 do Oceanos - Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa, uma de nossas distinções mais importantes. São duas categorias: Poesia e Prosa/ Dramaturgia. Vencedores embolsam 150 mil reais e podem me chamar para a festa.
As inscrições vão até o dia 24 de março. Aqui mais informações.
Continentes de dentro
A
escreveu no Vértebra Latina sobre “Os Continentes de Dentro”, de María Elena Morán (Zouk), venezuelana radicada no Brasil. Esse livro me chamou a atenção quando o li no júri de algum prêmio, não recordo se Jabuti ou Oceanos.A mentira é absoluta
“A verdade é relativa. O mesmo acontecimento podemos ver de maneiras diferentes e cada um ter sua verdade. Mas a mentira é absoluta. E, em meus livros, você não vai encontrar nenhuma mentira sobre a realidade cubana. Talvez a verdade que eu diga possamos discutir. Mas você nunca vai poder me dizer que eu contei uma mentira”.
O colega Jamil Chade esteve em Cuba e fez uma entrevista com Leonardo Padura, autor, dentre outros, de “O Homem que Amava os Cachorros” (Boitempo, tradução de Helena Pitta).
📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝 Annie Ernaux e os livros para perturbar, mexer com senhos, desejos.
📝 Revelador e devastador: nova chance para ler “Holocausto Brasileiro”.
📝 Não ser tacanho é essencial para se entender de verdade com a arte.
📝 É fraco o novo livro de Gabriel García Márquez: resenha de “Em Agosto nos Vemos”.
🎙️ Influente, maldito, cancelado: vale ler Charles Bukowski?
Estou lendo um livro chamado The Washington Book, onde o escritor Carlos Lozada junta diferentes artigos que ele escreveu ao longo dos anos cobrindo os políticos de Washington. Eu pessoalmente evito ler livros de políticos, especialmente os de memória, não só porque são geralmente mal escritos, mas porque também são puro suco da propaganda que vemos nas redes sociais. Mas é interessante pois esse é o trabalho dele (ler político) e ele encontra coisas que vão muito além que captamos nas notícias, seja de campanha eleitoral ou durante um governo. Ele cita Bill e Hillary Clinton, Obama, Kama Harris, Joe Biden e obvio, Trump, em seus diversos livros e demonstra como cada um desses são grandes hipocritas ou se contradizem sem perceber (ou percebendo) de um livro a outro. Enfim, se tem livro que tem data de expiração, os livros escritos por políticos não duram três meses.
Perguntas difíceis, Rodrigo. Lembro quando li Sartre com uns 18 anos, aquilo batia forte em mim. Fui reler ano passado e já não rolou aquele fascínio e sedução de antigamente...