Fiquei impressionado com uma matéria que li nesta semana após ver um post da espanhola Irene Vallejo, autora de “O Infinito em um Junco”.
Nos Estados Unidos, dois caras estavam incomodados. A vida social não permitia que lessem tanto quanto gostariam. Decidiram, então, chamar os amigos para momentos de leituras conjuntas. Todos no mesmo espaço, mas cada um no seu universo, cada um com o seu livro.
A ideia fez sucesso, cresceu. Virou o Reading Rhythms, projeto que promove o que chamam de festas de leituras. O primeiro evento contou com dez participantes. Hoje a dupla roda os Estados Unidos para fazer esses encontros. Às vezes, escritores renomados pintam como convidados especiais.
Dia desses, na Times Square, em Nova York, uma turma admirável compareceu a uma dessas festas apesar da chuva chata. Bonito ver as fotos de gente com capa, manta ou sombrinha encarando o mau tempo e curtindo seu livro.
Até aqui, já foram mais de 150 encontros, alguns com dezenas, outros com centenas de pessoas. A essência continua a mesma: são leitores que se reúnem para fazer companhia uns aos outros enquanto leem em silêncio. Fazem uma pausa para trocar ideias e, depois, voltam às páginas. Finalizam discutindo algo em comum.
Ao ler a matéria no El Pais, lembrei de um leitor que pediu para que eu escrevesse sobre a solidão na literatura, que acompanharia tanto quem escreve quanto quem lê. Em outro momento eu posso pensar pelo lado do escritor. Por enquanto, fiquemos com os leitores.
Há sim uma camada inevitavelmente solitária na leitura. Podemos estar acompanhados de um estádio cheio, mas a forma como a palavra escrita repercute em cada indivíduo é sempre única. Falo do que acontece em nossa cabeça enquanto percorremos as páginas, o ritmo, as nossas reflexões, a forma como enxergamos as cenas, os traços que damos para os personagens, as interpretações que fazemos.
Esse é um aspecto necessariamente individual da leitura. Depois até podemos compartilhar sentimentos e afinar ideias, mas a recepção inicial é profundamente íntima. Não solitária de todo, no entanto. Vivo muito bem acompanhado pela coleção de histórias e personagens marcantes que ajudam a dar sentido à vida.
Agora, certo clichê de leitor isolado do restante do mundo enclausurado na biblioteca, vivendo apenas entre livros e pensamentos, não faz muito sentido. Pode corresponder a um tipo muito específico e raro de leitor, mas há outros tantos. E notamos isso ao olhar para o presente e para a história.
Na Grécia Antiga, multidões participavam de grandes festivais organizados para que longos poemas fossem integralmente recitados. Milhares de anos antes de os livros ganharem a cara que têm hoje, esse povo se reunia durante dias para ouvir histórias como “Ilíada” e “Odisseia”.
Muitos séculos depois, já com a literatura impressa circulando com facilidade, grandes escritores atraíam um público imenso para leituras públicas. Charles Dickens, por exemplo, fazia turnês e caprichava na teatralização para levar suas criações ao maior número possível de ouvintes.
A forma como um grego absorvia as histórias de Homero ou que um britânico imaginava as cenas criadas por Dickens era única. O contato com essas histórias, no entanto, rolava em eventos coletivos, repletos de outros leitores e ouvintes. Não era solitariamente que curtiam a literatura.
Hoje a leitura compartilhada ganha outros contornos. Clubes de leitura são espaços de trocas de ideias sobre aquilo que já foi lido, uma sociabilização após a leitura mais reclusa (conhece o clube da Página Cinco?). E há ações que se aproximam das festas de leitura que têm rolado nos Estados Unidos.
Outro dia, a Bárbara Bom Angelo, da
, fez uma live para ler as primeiras páginas de “Intermezzo” e trocar ideias sobre Sally Rooney com outros leitores. Bibliotecas são cada vez mais espaços de encontros entre jovens, como escrevi em abril. E há os sprints de leitura, espécie de versão virtual do Reading Rhythms, com um monte de gente se encontrando em lives para ler e papear.Dá para dizer: hoje só é um leitor recluso e solitário quem quer. Mas não que curtir um bom livro sem mais ninguém por perto seja um problema. Gosto muito, aliás.
Espaço patrocinado por Crio Café
Chafé?
Gostos a gente desenvolve.
Na literatura é assim. Começamos com livros mais simples e, quando temos interesse, aos poucos procuramos por títulos e autores complexos, que apresentam histórias e personagens menos chapados, com mais nuances.
Vejo um paralelo enorme entre essa caminhada com os livros e meu interesse por comidas e bebidas.
Quando alguém chama um bom café de “chafé”, sei que essa pessoa ainda pensa numa bebida extremamente torrada e provavelmente muito adoçada.
Há um outro universo, muito mais diverso e interessante, quando falamos de cafés, uma das minhas paixões. E a partir desta edição da Página Cinco escreverei um pouco a respeito desse mundo que existe entre a fazenda e a xícara.
Isso porque agora a newsletter conta com apoio da Crio, uma das minhas cafeterias favoritas. É aqui de São Paulo, mas faz entregas para todo o Brasil. E há bem mais do que cafés entre os produtos que oferecem (vejam aqui).
Recomendo que conheçam o trabalho da Crio, que eu já tinha indicado em outras oportunidades. E esqueçam esse papo de “chafé”.
Liberdade intelectual
“A liberdade intelectual depende de coisas materiais. (Balanço a cabeça para os lados quando penso nas pessoas que têm acesso aos bens materiais e portas abertas e, simplesmente, continuam trancafiados).”
escreve sobre Virginia Woolf – e não só – em A Vida Possível.Melhor não lembrar de tudo
“Foi a portuguesa Dulce Maria Cardoso quem me fez ver que às vezes é melhor não lembrar de tudo. Dona de uma memória privilegiada, a autora de O Retorno demonstra que recordar pode ser um castigo. ‘É como visitar cemitérios. Estou sempre a sobrepor coisas que aconteceram há dez, vinte, trinta anos, e evidentemente são mortos, são pessoas que já deixaste de ver, que já não se dão contigo, e tu sabes exatamente o que elas fizeram, o que disseram, o que aquela pessoa contou e o que comeu naquele dia’”.
A memória, ou a falta dela, por
.Elvira Vigna
“Uma característica da obra de Elvira Vigna é o uso de narradoras que mentem. São pessoas ambíguas, em contínuo processo de construção, tão confiáveis quanto nós, não confiáveis até para si mesmas, e que nesse jogo de contar o que lembram, constroem um cenário em movimento. O que é dado como certo no início pode se mostrar algo muito diferente no final da história. Elas não contam o que é, o que foi. Elas contam o que pode ter sido. O resto faz parte do jogo da literatura.”
Elvira Vigna por
na Encruza.Historieta Transtornada
Uma história do quadrinhos brasileiro por
no Virapágina.📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝 Éric Vuillard: a balela da honra quando guerras e lucros se misturam
📝 “Avalovara”: nova vida para um dos grandes livros da literatura brasileira
📝 João do Rio contra as pessoas esnobes
📝 A pergunta que surge dos números: homens são alérgicos a livros?
🎙️ Rui Tavares e a sabedoria como caminho para a felicidade:
Oi, Rodrigo. Gostei muito das tuas reflexões sobre a experiência da leitura. Os encontros coletivos mencionados acredito que sirvam também como forma de resistência ao uso do livro de papel. Pelo menos na foto não vi ninguém lendo em tela. Não sou contra a leitura em outros dispositivos, às vezes é até necessário, mas nas mãos dos mais jovens quase sempre dá uma coceirinha pra parar a leitura para ver se tem mensagens... rsrsrsr No email que você mandou hoje você menciona a discussão sobre o "Cidadão de segunda classe" para dezembro. Como eu não pude estar presente no último encontro, fiquei na dúvida se houve alguma mudança ou se foi somente um pequeno engano.
Nunca tive essa experiência de leituras coletivas, mas tenho curiosidade. Deve ser ótimo poder ler junto e, depois, quem sabe, trocar ideias sobre a leitura.
Obrigada pela menção, Rodrigo! 🌻