Um país forjado pela literatura
Como Dom Quixote ajuda a dar algum sentido ao que entendemos como real
Não, não precisei lutar contra nenhum dragão ao longo da viagem. Sequer encontrei moinhos de vento, apenas hélices para gerar energia eólica. Teve café da manhã aos pés de Cervantes, pelo menos. Croissant e o cappuccino vagabundos comprados num mercado, a bunda gelou rapidinho no piso frio, mas valeu a graça.
Esperava encontrar referências a El Quijote, como chamam o cavaleiro por lá, e a Miguel de Cervantes, seu criador, ao longo da viagem pela Espanha. Só não esperava tantas.
É um país com territórios autônomos, onde a monarquia é enfiada goela abaixo de parte considerável da população. A diversidade de línguas acompanha a pluralidade cultural.
Na Galícia, o contato com o simpático galego (auga para água, can para cachorro) é constante: em placas, conversando com os locais… Na Catalunha há lugares em que o catalão vem acompanhado de traduções para inglês e francês, mas não para o espanhol, um claro sinal de conflito. O País Basco com o seu misterioso e impenetrável euskera não entrou no roteiro desta vez.
A impressão é que um raro elemento a unir a Espanha é a admiração por “Dom Quixote” e a reverência a Cervantes. Por onde passamos, encontramos placas, estátuas, bustos, citações, ruas com o nome do autor.
Aqui uma calle em Madri, perto do hotel:
“A Liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos que os céus deram aos homens. A ela não se igualam nem os tesouros sob a terra nem encobertos pelo mar”. A citação quixotesca está numa placa em Salamanca:
Em Toledo, tirei uma foto com a estátua do cara numa das entradas do centro histórico da cidade com mais de 2.500 anos. Por lá, a maior graça é notar as marcas deixadas por judeus e muçulmanos em meio a megalomanias católicas:
Em Sevilha, outro trecho de “Dom Quixote”, desta vez numa referência à Giralda, um dos principais monumentos da cidade. É um antigo minarete incorporado à gigantesca catedral sevilhana:
Outros trabalhos de Cervantes são lembrados pelas ruas da Espanha. Aqui, referências a “Novelas Exemplares”, em Sevilha, e a “A Tia Fingida”, em Salamanca:
E tem também frase apócrifa sendo vendida em loja pra turista, o que não deixa ser mais um indício da popularidade do personagem.
“Cambiar el mundo, amigo Sancho, no es loucura ni utopia, sino justicia”. Cervantes jamais escreveu isso em “Dom Quixote”, como desconfiei quando vi a meia e confirmei ao fazer algumas pesquisas no hotel:
Todo país é uma ficção e a convivência harmoniosa entre as diferentes culturas, as diferentes pessoas, uma utopia. Bom notar como Dom Quixote, criação de Cervantes e paradigma do homem utópico, contribui para que a literatura dê algum sentido ao que entendemos como real.
E me digam: gostam da edição com mais imagens? Não gostam? Tanto faz?
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É uma pergunta que ouço com frequência.
Sempre digo: é besteira comparar o seu volume de leituras com o de alguém que trabalha com livros. Também não há fórmulas mágicas. O que funciona bem para um leitor pode ser desastroso ou enfadonho para outro.
O
, da ótima newsletter El Vicio Impune de Leer, concorda comigo nesse último ponto. Ele elencou uma série de conselhos e reflexões para quem deseja ler mais - e ler melhor, o que é bem mais importante:Mais edições da newsletter
Ficção é ficção
Adania Shibli, autora palestina que recentemente teve um prêmio cancelado na Alemanha por conta dos massacres que acontecem no Oriente Médio, escreveu um artigo publicado pela Folha.
Sim, ela fala sobre o que passou com o seu “Detalhe Menor”, o livro que seria premiado. Também analisa a forma como a obra foi recebida por certos críticos. Destaco um trecho do texto de Adania:
"Perguntar se a história é real ou fictícia em um romance é tão relevante quanto perguntar se a mesa ou a cadeira em um romance são reais ou fictícias. Um romance ficcional é um romance ficcional, assim como suas preocupações".
“Detalhe Menor” saiu no Brasil pela Todavia com tradução de Safa Jubran. Resenhei o romance para a coluna no Uol. Está aqui.
📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝 O livro é caro no Brasil ou nós que ganhamos pouco?
📝 Calma. não deixaremos de ler Machado só por causa da lista da Fuvest.
📝 Ano novo: dez votos para leitores e editores.
📝 Dez grandes começos da literatura para este início de ano.
Excelente! E até consegui entender o texto em espanhol, veja você. Abraços.
Adorei a edição com imagens!