“Sou profissional, sim, Clarice. Luto por esta condição”
E como disse Ana Maria Machado: “sem pagar, não dá”
Numa conversa em 1975, Clarice Lispector diz a Nélida Piñon se considerar uma amadora. Afinal, só escrevia quando tinha vontade. Diferente da colega, “profissional no melhor sentido da palavra”.
Nélida discordou. Respondeu que Clarice era uma profissional que ainda não tinha consciência disso. A autora de “A República dos Sonhos” falou sobre ser escritor no Brasil:
“Em princípio, todo escritor brasileiro é tratado como amador porque seu esforço operacional não se traduz em lucro. Invadem-lhe a consciência para que perca o orgulho, e jamais abandone o estágio adolescente que é próprio do amadorismo. Sou profissional, sim, Clarice. Luto por esta condição, e não abdico de tudo que isto implica”.
A passagem está em “Clarice Lispector Entrevista”, publicado pela Rocco.
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Ana Maria Machado é referência não apenas pela qualidade de sua literatura, mas também pela luta para que escritores sejam tratados como profissionais. Ana nunca viu problemas em falar sobre dinheiro.
É provável que só tenha conseguido seguir com sua carreira graças à colaboração para revistas e jornais. De lá, tirava a grana que lhe permitia apostar nas aventuras livrescas.
“É muito bonito falar sobre inspiração e não sei o quê, mas não é isso, não! Nós tínhamos que botar comida dentro de casa… Quem estava ali bancando era eu — dava aula na Sorbonne e escrevia para a revista Elle. Além disso, escrevia para o Brasil. Essa condição de todo mês ter que mandar uma história que ia ajudar a pagar o aluguel foi fundamental, muito mais do que um prêmio que veio depois. A gente não tem que mitificar muito isso, não”, contou em sua participação no Um Escritor na Biblioteca.
Lembra de outros escritores que conseguiram crescer ao seu lado, numa época de preocupação com a profissionalização: Ziraldo, Ruth Rocha, Lygia Bojunga… “Tudo porque tinha alguém pagando. Sem pagar, não dá”.
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Aos 93 anos, Ruth Rocha acabou de renovar contrato. A editora Salamandra publicará seus livros até 2039. “Não vou ficar viva por mais 15 anos. Acredito que eles me contrataram porque pensam que a minha obra vai continuar vendendo”, disse a autora de “Marcelo, Marmelo, Martelo” para o colega Gustavo Assumpção.
Na matéria, Ruth lembra quando ela e Ana Maria Machado fizeram um trato para batalhar juntas por melhor remuneração. Mantiveram-se firmes na hora de assinar com as editoras:
“Quando nós começamos a criar livros, as editoras ofereciam 2% [do faturamento] para a gente. Eu e a Ana fechamos um acordo: não aceitaremos menos de 10%. E assim foi. Ela é minha amiga, nós temos uma cabeça igual”.
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É muito bem-vinda a série de vídeos e postagens que Jarid Arraes tem soltado no Instagram. Nessas publicações, a escritora reflete sobre dinâmicas do mercado editorial, emite alertas de ciladas e expõe algumas práticas draconianas que existem por aí.
Um exemplo:
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Não é assunto dos mais divertidos, longe disso. Mas falar sobre grana, contratos e formas de arrumar trabalhos para manter a vida também é essencial para quem quer viver dos livros, da literatura, da escrita.
Precisa sair por aí como um bitolado em finanças que só sabe falar de lucros e planilhas? Não, por favor. Mas são questões que fazem parte do cotidiano, então é bom ter por perto pessoas de confiança para conversar a respeito.
A troca de informações é crucial para termos uma noção do que e de como fazer - ou cobrar, ou se contentar… Costumo aconselhar: temos que ter clareza do que vamos ganhar quando nos dedicamos a um trabalho, seja ele qual for. A parte simbólica (projeção, currículo…) importa, mas a material (dinheiro) é fundamental.
Dia do trabalhador está aí. Como defendeu Nélida, que quem trabalha neste nosso universo seja tratado como profissional. Porque, como disse Ana Maria, “sem pagar, não dá”.
Clube de Leitura Página Cinco
Em fevereiro nós tivemos um excelente papo sobre “Detalhe Menor”, da palestina Adania Shibli (Todavia, tradução de Safa Jubran).
Os próximos livros do Clube de Leitura Página Cinco também prometem gerar bons encontros.
No dia 28 de abril, às 20h, conversaremos sobre “A Casa de Barcos”, de Jon Fosse (Fósforo, tradução de Leonardo Silva Pinto).
Já em junho, papearemos sobre “Te Dei Olhos e Olhaste as Trevas”, de Irene Solà (Mundaréu, tradução de Luis Reyes Gil).
O Clube de Leitura da Página Cinco é exclusivo para os leitores que contribuem com uma grana para a newsletter. Aqui está a relação dos livros que já lemos.
Espero que você possa se juntar ao Clube. E se não puder ou não quiser participar, mas vê valor no meu trabalho, considere colaborar com a Página Cinco.
Pagou para trabalhar
“Ao longo de quatro anos, ela publicou 177 vídeos e, logo de cara, conta que isso lhe rendeu 18 milhões de views e um total de US$187.997 (o que equivale a algo como R$1.080.000). E claro que a nossa tendência é achar que ela engordou bem sua conta. Pois aí é que entra o relato que desmembra a lógica de produção de conteúdos de alta qualidade e que mostram que, no fim das contas, ela pagou para trabalhar” -
e a história de Carla Lalli Music.Abrir uma biblioteca
“Um dos meus sonhos mais loucos é ter dinheiro para abrir uma biblioteca de bairro. Não uma livraria, veja bem, uma biblioteca. Se não for possível, quando me despedir desta vida, quero que os amigos entrem na minha casa, vasculhem as estantes e levem as obras que quiserem” - da
.Literatura que se pretende política
“Há dois erros muito comuns na literatura que se pretende política, vejamos: ou ela é panfletária (fala aos iguais, sem convite; todos já se conhecem, conhecem o discurso, conhecem seus lugares à mesa e falam o que ensaiaram de antemão) ou ela é didática (ensina ao leitor e à leitora uma verdade, ignorando que as verdades costumam ter diversos lados). E nisso a maioria falha. Primeiro, porque os panfletos que recebemos acabam invariavelmente no lixo. Depois, porque se a aula não é realmente muito boa, logo se esquece da lição” - do
.Deus X Amor
"É mais fácil encontrar alguém que questione a existência de Deus do que quem questione a existência (ou a necessidade de existência) do Amor…
O fervor cancelatório de um fã decepcionado, nesta minha equação, equivale à de um amante traído" - do Braulio Tavares no Mundo Fantasmo.
📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝 Mario Vargas Llosa: literatura para confrontar a medíocre realidade
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🎙️ Arrepios e perturbações: o horror na literatura latino-americana - papo com Oscar Nestarez:
Muito obrigada, meu querido. Comecei a minha carreira como autora independente e hoje vivo 100% como escritora, pago todas as minhas contas e tudo que preciso e quero com meu trabalho de escritora. Tive que aprender com as ciladas, fui ingênua, entendi e continuo entendendo as coisas porque sou viciada em não ser feita de trouxa. Acredito na profissionalização desse mercado, penso que precisamos de mudanças, de uma boa faxina. Acima de tudo, sou trabalhadora. Estar aqui no seu texto significa muito para mim. Um grande beijo!
Nossa, eu acho que a minha maior frustração, como autor independente, é ter que livro após livro lutar com todas as minhas forças pra que eles sejam minimamente considerados como leitura. Quando a primeira depreciação que você sofre como escritor é ter esse status de profissional negado porque você é o tempo todo empurrado pro acostamento onde correm por fora os "amadores", na longa e sinuosa estrada da validação literária, essa luta pelo profissionalismo se torna uma causa tão desgastante que, se não fosse o prazer da leitura e da escrita, nem a certeza da vocação, eu já teria desistido disso tudo faz tempo.