Samanta Schweblin: a literatura acontece a dois
Uma longa entrevista com a escritora argentina, que acaba de lançar “O Bom Mal”
Consigo pensar no exato momento em que a literatura latino-americana contemporânea me arrebatou de vez. Foi em 2013, ao ler “A Mala Pesada de Benavides”, um dos contos de “Pássaros na Boca”, da argentina Samanta Schweblin, livro então publicado pela Benvirá.
Acompanho de perto a trajetória da autora desde aquele encontro memorável. Insisti ao longo de anos: leiam Samanta, leiam Samanta! Não que ela seja dona de uma obra perfeita, irretocável ou qualquer bobagem superlativa. Mas é uma artista que, quando acerta (e acerta com frequência admirável), atinge um nível de excelência impressionante, raríssimo.
Samanta passou a ser mais lida por aqui, me parece.
Hoje é a Fósforo que cuida de seus livros. “Pássaros na Boca” foi reunido num só volume junto com “Sete Casas Vazias”, outro de contos. A enigmática novela “Distância de Resgate”, antes publicada pela Record, ganhou nova edição no ano passado. “Kentukis”, único romance da escritora, nos chegou em 2021, três anos depois de ser lançado.
Agora, um sinal positivo: “O Bom Mal”, novo livro da autora, pinta em nossas livrarias apenas alguns meses depois de sua publicação em espanhol (a tradução é de Lívia Deorsola; no rodapé estão os créditos de todas as traduções1). A novidade foi a deixa para fazer, por e-mail, a longa entrevista que vocês lerão a seguir.
Nos seis contos do volume, as principais características da literatura de Samanta seguem presentes, talvez até intensificadas. Uma delas é para aplaudir de pé: permanece a fé no leitor, corresponsável por fazer com que a literatura aconteça.
Qualquer aparente normalidade costuma ser abalada pelo absurdo nas histórias de Samanta. Em algum momento, o que entendemos como real, o mundo cotidiano, começa a apresentar nuances excêntricas, talvez delírios. As singularidades às vezes assombram, em outras espantam. Sempre incomodam. Ler a argentina é ter uma sensação permanente de desconforto. É ótimo.
Um aspecto evidente de “Kentukis” se repete: diferentes lugares do mundo servem de palco para o que Samanta decide narrar.
Argentina que vive em Berlim desde 2012, as histórias da escritora podem passar por cantos tão diferentes quanto Xangai, Madri ou uma cidade perdida no interior do Brasil. É um imaginário que perambula com liberdade irrestrita e começa a contrastar com um mundo cada vez mais fechado, atolado em suas próprias limitações, em devaneios de fronteiras bem delimitadas.
O significado de fronteiras e nacionalidades para um escritor. O diálogo com a obra de autoras como Silvina Ocampo. O papel das crianças e dos animais em sua prosa. O ambiente doméstico como espaço ameaçador. A ficção para nos aproximar de zonas cinzentas. A literatura como uma arte que só acontece a dois. Esses são alguns pontos do papo com Samanta.
Estamos numa época de muita literatura que recusa o não-dito, as entrelinhas. É uma literatura que parece ter medo de perder o leitor caso a história não fique muito bem explicada, com tudo no seu lugar. Não é esse o seu caso. É comum que suas histórias exijam que o leitor as complemente de alguma maneira, crie suas próprias interpretações. Por que essa opção e quais implicações isso traz?
Suponho que isso venha do que eu mesmo necessito como leitora. Todos gostamos de entretenimento, mas, como leitora, quero algo que me toque profundamente, que me envolva, que amplie meu campo de pensamento. Quero o abismo de ler os poemas de Anne Carson, os contos de Amy Hempel ou os romances de Vivian Gornick e entender que isso que acontece comigo, esse pensar em algo que não havia pensado antes, esse encontro com uma frase que me faz entender algo a meu respeito, têm um impacto real na minha forma de ver o mundo e até nas decisões que tomo sobre a vida.
E não acredito que esse tipo de literatura seja feita de interpretações aleatórias nem de finais abertos. Acredito que esses autores escrevem no papel, mas também escrevem na cabeça do leitor. Nem tudo está dito – ou escrito –, mas tudo está pensado. E, como leitora atenta que sou, me impressiona quando vejo até que ponto, durante a escrita, esses autores anteciparam meu próprio movimento. A literatura não é um livro fechado. A literatura acontece quando alguém abre um livro e lê, é um evento presencial, que acontece a dois.
“O Bom Mal” traz contos que me parecem dialogar com o que você trabalhou em “Distância de Resgate”: o ponto de não-retorno, o momento em que tudo desmorona, em que um afastamento se transforma numa ruptura. Não sei muito bem se daqui surge uma pergunta, mas gostaria que você comentasse esse aspecto da sua literatura.
Já comentaram bastante isso comigo. Eu mesma sentia esse diálogo enquanto escrevia esses contos. Os enredos não têm nenhuma conexão, tampouco os personagens, mas há algo no tom, na tensão e até na demanda pela atenção do leitor, o que conecta um pouco com a atmosfera e a intensidade de “Distância de Resgate”.
Os animais estão muito presentes na sua literatura. Neste novo livro há um coelho, um cavalo e alguns gatos com papéis importantes nas histórias. Não são exceções. Penso também nos pássaros de “Pássaros na Boca” e nos kentukis, robôs com um lado de bichos de estimação. Na vida, como é a sua relação com os animais, especialmente os domésticos, e por que levá-los com tanta frequência para as histórias?
Um cavalo pode mudar todo o tom de uma cena. Um coelho pode se transformar no personagem mais lúcido do conto. Os animais não estão ligados à linguagem nem à lógica narrativa, talvez por isso sejam personagens tão bons. Não respondem, não explicam, não se justificam. E às vezes nos confrontam com outras formas de perceber a realidade, como os símbolos ou os sinais. Suas presenças muitas vezes alteram meu estado e me fazem dialogar comigo mesma, como que por meio de um espelho.
Para ser sincera, não penso neles de propósito enquanto escrevo, mas é incrível como de maneira natural, de uma forma ou outra, sempre acabam aparecendo na minha escrita. Aparecem de repente, como o coelho branco e o Gato de Cheshire apareciam para Alice.
A infância é outro ponto que conecta boa parte dos contos de “O Bom Mal” com diversos momentos da sua obra. O que há de tão intrigante ou fascinante nessa fase da vida para que ela receba tamanha atenção na sua escrita?
Me interessam essas experiências primárias, essenciais, que tem raízes na infância, quando o mundo ainda não está domesticado pela linguagem e as regras não são totalmente claras. As crianças veem o mundo pela primeira vez, sem filtros, e isso aguça suas percepções. Não têm ferramentas para nomear tudo o que sentem ou veem. Ou eles mesmos nomeiam, mas com construções e ideias diferentes das nossas, e às vezes até mais sinceras e diretas, mais sensatas.
Além disso, não julgam tanto. Um garoto que descobre a doença, a morte, o medo ou o desejo não necessariamente vivencia isso como algo “bom” ou “ruim”; vive como algo que o transforma, o leva para outra condição. Talvez seja simplesmente meu desejo de tentar resgatar uma forma mais direta e pura de percepção.
Leio esses novos contos, lembro de “Sete Casas Vazias” e percebo que o ambiente doméstico é retratado como um espaço muitas vezes inseguro, onde pairam ameaças e mistérios. O mesmo vale para contos de outros grandes escritores argentinos, como Silvina Ocampo e Julio Cortázar. De onde vem essa desconfiança com o que há dentro de casas aparentemente comuns?
O que me surpreende é que isso ainda nos surpreenda. Pensamos nos nossos lares como espaços seguros, mas a grande maioria das cenas de violência doméstica, abusos e suicídios acontecem também nesses lares. Os lugares onde vivemos também são espaços aos quais estamos presos. Não são unicamente isso, é claro, e essas histórias não tratam de abusos, mas aponto isso para desfazer essa ideia tão idílica e padronizada que temos do lar.
O livro abre com uma citação de Silvina Ocampo que diz: “O estranho é sempre mais verdadeiro”. Também poderíamos parafrasear como “O comum é sempre uma mentira”. Nesse sentido, um adjetivo como “comum” ou “familiar” para a palavra lar, “casa”, me parece o mais inquietante.
Como que essa literatura cheia de estranhezas e assombrações dialoga, complementa ou colide com um mundo cada vez mais tenso e cheio de ameaças?
O estranho e o perturbador não são um escape do mundo real, mas uma forma de voltar a ele com uma sensibilidade diferente. É minha maneira de trabalhar com o medo, de dar corpo ao que não podemos enfrentar de outra maneira, de deformar a realidade para poder olhá-la de novo.
Vivemos em um mundo cheio de ameaças concretas – a grande crise ecológica, as migrações forçadas, a violência institucional, e esta radicalização venenosa de todas as ideias que temos sobre o mundo. No atual cenário, olhar com atenção genuína, ver as zonas cinzentas e ter empatia com outros olhares possíveis é um exercício difícil, mas necessário, e a ficção é um instrumento perfeito para essa prática.
Você vive em Berlim desde 2012. Sei que continua se vendo como uma autora essencialmente argentina, mas noto que suas histórias passaram a estar ambientadas em vários cantos do mundo. “Kentukis” é um romance que passa por cidades de diversos continentes. Agora também temos contos localizados em lugares tão diferentes quanto Xangai, Madri e Buenos Aires. Poderíamos dizer que você hoje compreende que qualquer canto do mundo pode lhe servir de cenário para que continue sendo uma escritora argentina?
Qualquer lugar pode servir de cenário, é verdade, mas tem que existir uma razão pela qual, como escritora argentina e latino-americana que sou, escolho narrar a partir desses lugares. Quero dizer, meu olhar continua voltado para a Argentina. Se me afasto do território é porque há algo que me auxilia a seguir pensando minha argentinidade ou meu continente. É verdade, vivo fora há mais de uma década, e Berlim cada vez mais se transforma no lugar onde me sinto em casa, mas aqui sempre serei uma estrangeira.
Complementando e meio que contradizendo a pergunta anterior: quanto que fronteiras, bandeiras ou nacionalidades fazem sentido na hora de definirmos a literatura de algum escritor?
Não sei se as bandeiras e as nacionalidades têm tanto sentido. Mas fazem sentido as comunidades e os territórios de onde a gente vem, a forma como vivemos a infância, as linguagens com as quais habitamos e refletimos sobre este mundo. Diria, inclusive, que a ficção com a qual chegamos onde estamos, e com isso não me refiro somente à literatura, mas a todas as histórias que contamos e nos contaram sobre nós mesmos (a história que estudamos na escola, o machismo com o qual nos formamos, os exemplos de heróis, heroínas, amigos e inimigos que fazem parte de determinada comunidade, as construções sociais a respeito do que é ou não possível, ou normal, ou aceitável no mundo em que vivemos).
As bandeiras e as nacionalidades, para mim, parecem quase uma invenção do passado a serviço de forças que nunca se importaram comigo. Quando digo que me sinto argentina, penso com orgulho em determinados grupos dos quais me sinto agradecida e privilegiada por fazer parte. Eles carregam muito dessa argentinidade, mas nem a bandeira nem a argentinidade em si os definem.
“Somos nosso próprio lugar-comum, e com o ego inflado só temos pretensões: quero que o texto diga isso e faça isso, quero que o leitor pense isso e aquilo. Quero falar desse e desse outro... Um texto nunca funciona obedecendo necessidades do escritor. Mas se o escritor obedece às necessidades de uma história, tudo caminha muito melhor”, você me disse numa entrevista em 2022. Quais necessidades foram impostas pelos contos de “O Bom Mal” durante a escrita?
Talvez o maior desafio tenha sido a construção do narrador de “O Olho na Garganta”. Aqui, como na sua citação, eu tinha minhas intenções e meus desejos, mas a história constantemente me puxava para uma zona mais difícil, que não sabia se seria capaz de resolver. A história me pedia um narrador capaz de narrar próximo a seus pais inclusive quando ele não estava lá para vê-los. E, claro, sempre podemos brincar com esses recursos, mas, se não há algo na história que realmente sustente esse artifício, isso é justificável? é plausível? qual é o objetivo de fazer esse movimento?
Avançando na história consegui entender melhor o acidente que o protagonista sofre na infância. Não quero dar spoiler, mas digamos que, “estraçalhada” a linguagem de uma criança que não poderia nunca falar, e lidando com um corpo ferido, um corpo que literalmente tem um orifício cirúrgico aberto para o mundo, os limites do narrador imediatamente se abriam para novas possibilidades. Foi o corpo do personagem principal que me impôs os limites – e também as soluções – do problema técnico de como contar esta história.
“‘É que quero que fique perfeito’, dizia eu. ‘Muito bem’, dizia ele, ‘leve todo o tempo do mundo’”, lemos a respeito da escrita numa parte de “William na Janela”, um dos contos do novo livro. Quando você tem a certeza de que um conto está pronto?
É difícil de explicar. É preciso assar, deixar esfriar e provar para ver o sabor. Dou para as pessoas lerem, me preocupo em entender como o leitor lida com esses contos, onde ele para, onde tropeça ou hesita. Para isso, não há nada melhor do que fazer com que esses textos sejam lidos repetidas vezes e perguntar aos leitores sobre como foi essa leitura.
Ainda assim, não basta que uma história chegue ao ponto de parar de pé sozinha. Quero dizer, nem tudo que está concluído merece ser publicado. Para publicar, preciso que uma história seja também necessária, pertinente, ainda que para mim. Que tenha uma razão contundente para ser contada e que ressoe alguma questão que seja vital para mim enquanto a escrevo.
Clube do livro
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Nossas próximas leituras estão definidas:
Em agosto conversaremos sobre “Kramp”, pequena preciosidade da chilena María José Ferrada (Moinhos, tradução de Silvia Massimini Felix).
Em outubro será a vez do doloroso “Homens ao Sol”, de Ghassan Kanafani, um dos principais nomes da literatura palestina (Tabla, tradução de Safa Jubran).
E em dezembro conversaremos sobre uma das escritoras brasileiras mais aplaudidas dos últimos anos: Micheliny Verunschk. O livro escolhido é “Caminhando com Os Mortos” (Companhia das Letras), vencedor do Oceanos de 2024.
Aqui está a relação dos livros que já lemos.
O Texto & O Tempo
Neste final de semana rolará a edição de 2025 de O Texto & O Tempo, ótimo evento online sobre newsletter, com encontros ao vivo durante o sábado e o domingo.
Conversarei sobre escrita e literatura com a
, escritora que toca a Tristezas de Estimação, e , curadora da Flip e autora de A Lábia. A mediação será da , também escritora e a responsável pela Te Escrevo Cartas.Apareçam!
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🎙️ Literatura latino-americana e as formas de sobreviver às catástrofes - papo com Ellen Maria Vasconcellos:
A edição da Record de “Distância de Resgate” foi traduzida por Ivone Benedetti. “Pássaros na Boca & Sete Casas Vazias” e a edição da Fósforo de “Distância de Resgate” foram traduzidos por Joca Reiners Terron. “Kentukis” e “O Bom Mal” foram traduzidos por Livia Deorsola.
Muito bom, Rodrigo, como sempre! A Argentina está com uma safra e tanto, Samanta Schweblin está entre minhas preferidas contemporâneas
Muito boa entrevista! Obrigado por disponibilizá-la de graça para nós.