🧐 Crítica: entre o rigor e a grosseria
E sem esse papo de "crítica construtiva”, por favor
Não, não, por favor, não. Não! Não me venha com o papo de crítica construtiva. Existe crítica bem feita e existe crítica mal feita. O que as distingue é a maneira como o autor da crítica ilumina o objeto criticado e sustenta as suas posições. A partir disso, o alvo da crítica que tire ou não eventuais aprendizados.
Quem deve se preocupar em ser “construtivo” é o editor, o professor de escrita, o leitor de confiança, a mãe do autor, não o crítico. Sequer vejo como função da crítica palestrar sobre o que um escritor deveria ou não fazer. Tentar compreender o que está feito e vez ou outra vislumbrar outros caminhos me parece o suficiente.
Tenho pensando na camada crítica do meu trabalho muito por conta do papo com o Rafael Gallo na última edição do podcast. Em “Dor Fantasma”, romance que lhe valeu o Prêmio Saramago, Gallo nos entrega um personagem de rigor agudíssimo e rara falta de tato.
Muita gente confunde crítica com grosseria. Tem um pessoal que cresceu vendo Paulo Francis e não sabe discernir olhar severo de estupidez performática. Uma estupidez que costumamos encontrar também em programas de televisão onde participantes são expostos ao escárnio de julgadores. Valoriza-se mais o achincalhe midiático do que qualquer construção argumentativa. É tosco.
Ao escrever, me preocupo em mostrar aspectos que agradam ou desagradam, que funcionam ou não num livro. Quando possível, dou exemplos, ilustro o que motiva um elogio ou um desapreço. Isso contribui para a compreensão do leitor, creio.
É claro que a impressão geral sobre o livro está presente. Às vezes aparece num adjetivo ou numa frase que amarra o texto, mas não só. Também é transmitida de forma mais velada por meio do tom da resenha. Há quem diga que fui duro demais ao escrever sobre o livro do Menino do Acre, por exemplo, mas essas pessoas não tiveram que ler o que li.
Uma crítica bem construída permite ao leitor sagaz avaliar se concorda ou não com a perspectiva oferecida pelo crítico ou resenhista. Esse bom leitor, com sua própria visão sobre a literatura, sabe avaliar se algo apontado como problemático é mesmo um problema ou se a alardeada virtude é, de fato, digna de nota. A crítica é um jogo aberto.
Rolou certo regozijo nas redes com leituras negativas que saíram de “Salvar o Fogo”, novo livro de Itamar Vieira Junior. A minha própria resenha do romance não foi exatamente positiva. Pelo visto incomodados com o sucesso de “Torto Arado”, leitores aproveitaram para jogar tomates virtuais em Itamar. Zombarias ao escritor, ao mercado, a outros leitores soterrando o primordial: reflexões sobre o que há nas obras.
Volto a um ponto que emerge de “Dor Fantasma”, do Rafael Gallo: é possível haver um equilíbrio entre o bem-vindo e necessário rigor e o respeito ao autor do livro criticado (ou do filme, da peça, da interpretação musical…)? É óbvio que sim. O foco deve sempre estar na obra, na representação, no trabalho, não na pessoa. A questão nunca é pessoal. Ou não deveria ser, pelo menos.
Papel do leitor
Do João Cezar de Castro Rocha: “Complexidade na literatura só se constrói pela leitura”
🎬 Um filme
Uma família com suas rusgas tenta seguir vivendo da agricultura enquanto outros interesses começam a dominar os campos da Espanha. Entre a tradição e o tal progresso que tudo atropela, gerações entram em conflito e jovens tentam encontrar a própria identidade.
Vale assistir “Alcarràs”, filme catalão que apresenta traços de uma questão também retratada em “Serotônina”, de Michel Houellebecq: as lutas que marcam mudanças nos rumos de comunidades rurais europeias. Na França há até um grupo (tido como terrorista por alguns) que se organiza para defender produtores de vinho
“Alcarràs” está disponível no Mubi.
Bolaño e a comédia humana
Nome fundamental da literatura latino-americana no século 20, autor de obras como “2666” e “Detetives Selvagens”, o chileno de espírito transnacional Roberto Bolaño teria feito 70 anos no dia 28 de abril, caso não tivesse morrido em 2003.
O sempre imperdível Braulio Tavares escreveu sobre algumas marcas da escrita de Bolaño em seu blog, o Mundo Fantasmo. Um trecho:
“Bolaño tem um olhar empático para contemplar a comédia humana. Constrói seus personagens com traços rápidos e precisos, revelando um lado essencial de seu método: uma curiosidade atenta e lúcida pelas pessoas de carne e osso, seus sentimentos, crenças, expectativas. Uma empatia que não dispensa a visão crítica, o humor e mesmo o sarcasmo, onde ele se aplica. Uma vivência de pele curtida”.
Mais Bolaño
No podcast há um papo com o crítico literário Schneider Carpeggiani sobre a obra de Roberto Bolaño
Apreensão: vem aí um inédito de Gabo
Não sei se fico feliz ou preocupado com essa notícia.
Gabriel García Márquez, que se foi em 2014, largou o original de um livro na gaveta. Os responsáveis pelo espólio do colombiano decidiram, então, que é hora de fazer com que esse trabalho chegue aos leitores.
“En Agosto nos Vemos” sairá no ano que vem. O anúncio veio cheio de chavões. Trata-se de um romance no qual podemos perceber a capacidade de criação de Gabo, seu apreço pela linguagem e o profundo interesse pelo ser humano, pelas experiências e desventuras amorosas, anteciparam os herdeiros.
Aguardemos por algo mais concreto.
Arte da Palavra
Marcelo Moutinho, Luiza Romão, Jefferson Tenório e Andrea Del Fuego. Esses são quatro dos 51 autores que fazem parte do Arte da Palavra de 2023.
Promovido pelo Sesc, o Arte da Palavra é um circuito que leva escritores para rodar o Brasil. A previsão é que neste ano o projeto passe por 140 cidades de todos os cantos do país e realize quase 500 encontros para bate-papos, oficinas, contações de histórias e performances de poesia.
Uma das grandes sacadas é aproximar nomes de destaque no cenário nacional a artistas que despontam em cenas locais de diferentes estados das cinco regiões do país. Parte desses autores se reunirá também em junho para o Festival Arte da Palavra, o Farpa, que neste ano rolará no Sesc Cajuína, no Piauí.
Aqui mais informações sobre o Arte da Palavra.
Em 2021, o Arte da Palavra me convidou para entrevistar os 40 autores que participaram do evento naquele ano pandêmico. O trabalho foi publicado em forma de podcast:
E aqui o relato de uma edição que acompanhei do Farpa.
☕️ Um café
Que desta vez não será um café.
Quase sempre indico cafés em grãos para vocês. Hoje dou um passo atrás. Aqui um vídeo bem didático orientando o básico que alguém precisa ter para moer e tirar um bom café.
O clássico Melitta é o método que mais uso em casa.
📚 O que chegou por aqui
A protagonista deixa a casa onde mora e abandona marido e filho. É esse o final de “Casa de Bonecas”, do norueguês Henrik Ibsen. E é a partir desse ponto que Elfriede Jelinek arquiteta a trama de “O Que Aconteceu Após Nora Deixar a Casa de Bonecas ou Pilares das Sociedades”.
Escrita em 1979, a obra é a primeira dramaturgia da escritora publicada no Brasil. Chega aos leitores pela Temporal graças ao trabalho de um time de tradutores: Angélica Neri, Gisele Eberspächer, Luiz Abdala Jr. e Ruth Bohunovsky.
Austríaca, Elfriede Jelinek venceu o Nobel de Literatura de 2004 pela forma como, com capricho linguístico, revela os clichês e as opressões da sociedade.
📚 O que vem por aí
“O amor é uma muqueta bem dada no peito. Depois do sim, o beijo delicioso em seus lábios batom-violeta, Mariana beijava bem, me amolecia as pálpebras, ela gostava de Lupicínio Rodrigues e, aos domingos, logo após o café da manhã, colocava para tocar Loucura e caminhava pelo corredor escuro”.
Eis um fragmento de “Um Pedaço de Maçã”, conto que está em “Muqueta”, novo livro de Jorge Ialanji Filhollini. A obra marcará a estreia do EditoRia, selo da Ria Livraria.
O lançamento de “Muqueta” acontecerá no dia 3 de junho, a partir das 17h, na própria livraria, claro. Ela fica na rua Marinho Falcão, 58, Sumarezinho, na zona oeste de São Paulo.
🍻 Uma cerveja
"A ascensão da extrema-direita lavou o verniz modernoso da comunidade da cerveja. Ela se revelou racista, machista, homofóbica e misógina".
Já fiz muita cerveja em casa e vivia nos eventos de cerveja artesanal. Por que me afastei desse universo? Posso usar tranquilamente esse texto do Marcos Nogueira como resposta.
Mas ainda curto uma cerveja, claro. E nem toda cervejaria ou cervejeiro topou desfilar por aí de mãos dadas com o fascismo. Boa exceção é a Dádiva, dona de alguns rótulos admiráveis, como a sour pink lemonade.
📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝 Resenha da HQ “Náufrago Morris”, de Pablo Franco e Lautaro Fizsman.
📝 O diploma limpo de Chico Buarque, brigas e o que realmente importa no Camões.
🎙️ O Prêmio José Saramago e a falta de garantias na literatura: papo com Rafael Gallo:
📝 Derrota de Mauricio de Sousa: por que alguém ainda se decepciona com a Academia Brasileira de Letras?
📝 Caso Marçal Aquino: moralismo barato perseguirá a arte enquanto render votos.
🎙️ A mítica literatura de Cormac McCarthy num papo com Daniel Galera:
Gostei muito do texto, Rodrigo. Dois tostões sobre o assunto:
Escrever sobre a obra de alguém oferece uma leitura para aquilo que foi feito. Uma outra camada ao texto. Como leitor, aprendi muito lendo crítica de arte em geral.
Já sobre a grosseria, tenho a impressão que, na atualidade, ela perdeu um pouco de espaço. Ficaram só alguns que já não tem tanto estilo, que mais parecem cópias esquisitas do passado. Por outro lado, o excesso de cuidados na análise - medo de magoar amigos, de perder convites, de perder o espaço ou irritar fãs? - criou certa ideia de crítica que nada tem de interlocução.
Ufa. Finalmente alguém falou. A critica da Ligia abriu as porteiras para um monte de idiota (a culpa não é dela, a crítica é ótima e contundente)