Biblioteca: essa coleção de imaginações
“Toda biblioteca é, em certo sentido, imaginária"
A biblioteca chinesa de Dunhuang, localizada para os lados da fronteira com a Mongólia, fascina pelo seu passado. Ela foi lacrada no século XI e passou mais de 900 anos intocada, preservada no meio de uma caverna.
Faz apenas algumas décadas que um monge redescobriu o acervo repleto de manuscritos e algumas xilogravuras com preciosos registros da época em que foram cunhados. Uma biblioteca, também um tesouro com mais de mil anos de história.
Já a biblioteca da misteriosa ilha de Akaito, perdida no Mar do Japão, chama a atenção por uma peculiaridade. Todos os livros de seu acervo são duplicados. Os exemplares ficam em estantes diferentes e são atados por um fio. O chão do lugar está sempre coberto por cordões coloridos.
A lei local estipula: quando dois leitores pegam um mesmo título ao mesmo tempo, coincidência denunciada graças ao elo, são obrigados a se casar. Não por acaso, raramente alguém se divorcia em Akaito.
“Toda biblioteca é, em certo sentido, imaginária. O espaço físico de madeira, pedra, metal e vidro, os livros arranjados nas prateleiras e os próprios leitores não refletem a realidade de uma biblioteca, que reside nos conteúdos de suas páginas e, portanto, na mente dos leitores”.
É o que escreve o argentino Alberto Manguel, grande bibliófilo, camarada que já cuidou de acervos importantes e foi parceiro de leituras de Jorge Luis Borges.
Manguel talvez seja a maior referência viva quando o assunto é livros sobre livros. Registrou histórias de leitores espalhados por diferentes lugares do tempo e do espaço em “Uma História da Leitura” e contou histórias íntimas e de acervos arruinados em “Biblioteca à Noite”.
Em “Notas Para Uma Definição do Leitor Ideal”, cravou que Pinochet, tosco e sanguinário, foi o leitor ideal de “Dom Quixote”. Tinha medo da maravilha de Cervantes, por isso a proibiu.
De um outro trabalho que pesco as aspas de Manguel. É ele quem assina a apresentação de “As Bibliotecas Fantásticas”, que José Roberto Torero acaba de publicar pela Padaria de Livros.
Ilustrado por Eloar Guazzelli, trata-se de uma coleção de bibliotecas imaginadas pelo autor. Tanto a biblioteca de Dunhuang quanto a de Akaito aparecem pelo volume – e adianto, uma delas existe para além da imaginação.
A obra de Manguel é uma espécie de irmã mais velha, enquanto o livro de Torero faz as vezes de irmão novíssimo de “A Biblioteca no Fim do Túnel: Um Leitor em Seu Tempo”, que publiquei pela Arquipélago.
Pelas páginas de minha autoria estão enrascadas caras a qualquer leitor. Quando dar um pé na bunda de um livro enfadonho? O que fazer quando não nos entendemos com um clássico? Como domar a biblioteca particular que não para de crescer e ameaça tomar conta de toda casa?
O livro também mostra a literatura em atrito com a realidade e busca iluminar pontos do calabouço em que o Brasil se meteu nos últimos anos. Traz o que encontramos pelas páginas de uma Carolina Maria de Jesus, mas não ignora o prazer que sentiram Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector ao escapar de um congresso na Colômbia para tomar drinks e papear sobre a vida num bar qualquer.
“A Biblioteca no Fim do Túnel” segue essa longa tradição de livros que se debruçam sobre os próprios livros, miram histórias de leitores, eternizam passagens diretamente ligadas à literatura ou ao universo literário.
Escrevi sobre Manguel e Torero. Poderia ter seguido muitos outros caminhos. Estão nessa estante gente como Irene Vallejo e o seu formidável “O Infinito em um Junco”, Miguel Sanches Neto e “Herdando uma Biblioteca”, Jorge Carrión e “Livrarias”, Afonso Cruz e “O Vício dos Livros”.
Isso só para mencionar mais alguns colegas presentes, direta ou indiretamente, nessa minha própria biblioteca, essa coleção de imaginações, que chega aos leitores.
A Biblioteca
Uma versão do texto que vocês acabaram de ler foi publicada no jornal gaúcho Zero Hora no final de setembro do ano passado. Para escrever o artigo, aproveitei uma breve lista de livros que havia postado aqui na newsletter mesmo.
E “A Biblioteca no Fim do Túnel: Um Leitor em Seu Tempo” segue chegando a ótimos amigos leitores.
Quem aqui já leu o livro?
Além do site da Arquipélago, “A Biblioteca no Fim do Túnel” está disponível em diversas livrarias: da Vila, da Travessa, Martins Fontes, Amazon…
Para ler melhor
Como melhorar o hábito de leitura? Precisamos de tempo para fechar o livro? Como leituras compartilhadas e clubes podem dar uma força? O que fazer quando a leitura se torna uma obrigação e a gente passa horas capengando sobre aquela massa de texto?
A
passa por essas e outras questões numa série sobre a prática da leitura lá na Anacronista:Quadrinista para conhecer
“Se o objetivo de Roca, como ele diz, é criar empatia pela História, parece que ele está dando um passo a mais: criando empatia pelas histórias em quadrinhos”.
Não conhecia o trabalho do espanhol Paco Roca. Fiquei com vontade de ir atrás principalmente de “El Abismo del Olvido” após ler o que o
escreveu a respeito no ViraPágina:Cânone e barbárie
Para quê serve um cânone se ele não previne a barbárie? E como o cânone pode levar à barbárie?
São perguntas fundamentais (e que seguem martelando em minha cabeça) nesse ensaio que a
publicou sobre o alemão Bertolt Brecht na Verbete:Atenção, Sorocaba e arredores!
Agora em fevereiro eu vou ministrar a segunda edição de “A Fantasia e o Real - A Literatura Latino-Americana Hoje”. É uma espécie de guia de leitura em forma de oficina centrada na produção deste nosso canto do mundo.
Alguns nomes trabalhados nos encontros: Ariana Harwicz, Selva Almada, Mariana Enríquez, Camila Sosa Villada, Lina Meruane, Maria José Ferrada, Fernanda Melchor, Cristina Rivera Garza, Maria Fernanda Ampuero e Teresa Cárdenas. Isso sem ignorar Julio Cortázar, Roberto Bolaño, Silvina Campo e Gabo.
Vai rolar entre os dias 20 e 23, das 19h às 21h, no Sesc Sorocaba.
Mais informações aqui.
Eneida
Se vira com o espanhol e tem uma horinha sobrando para mimar o cérebro? Pois ouça esse papo entre a espanhola Irene Vallejo, que já apareceu por aqui hoje, e a italiana Andrea Marcolongo sobre “Eneida”, de Virgílio:
Café com César Aira
“Para Aira, a literatura de seu país não é a maior do continente. Esse título fica com a literatura brasileira”. Um dos favoritos ao Nobel ainda elogia Cruz e Sousa, Machado de Assis, Álvares de Azevedo e João Gilberto Noll.
Vale preparar um café - e separar umas cervejas, talvez um espumante, o negócio é grande - para ler esse perfil de César Aira escrito por Alejandro Chacoff para a Piauí.
Senhor dos sonhos
Não é um conteúdo sobre literatura, mas é uma história que simboliza bem a derrocada da democracia.
Um jovem cheio de ideias disruptivas, promessas truculentas e vontade de mudar tudo isso que taí. A maçaroca ideológica e a propaganda como pilar político crucial nas redes sociais. Uma população desesperada, topando soluções sinistras para tentar escapar da violência. A democracia corroída por dentro.
A história de Nayib Bukele, que acaba de ser reeleito presidente de El Salvador após algumas aberrações legais, contada pelo pessoal da Radio Ambulante (também em espanhol).
📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝O Museu de Arte Proibida e as ‘melhores intenções’ por trás da censura.
📝 Importância ou diversão: o que leva alguém a ler um livro?
📝 Perguntas para uma literatura feita com ChatGPT.
📝 Ver BBB como salvação para livros não passa de sebastianismo.
📝 Quando Liliana Colanzi despertou, o dinossauro ainda estava lá: resenha de “Vocês Brilham no Escuro”.
📝 Livros na folia: blocos, avenidas e o carnaval de Clarice Lispector.
Já seguindo a @anacronista. Muito ótima. Valeu pela dica.
Muito bom o texto. Gostei da reflexão sobre a luta pra seguir lendo um clássico que não te pegou.