⌛️ Tempo? São os bons leitores que eternizam livros
Sem leitores críticos se debruçando sobre livros e deixando suas marcas, nada acontece, nada se constrói
Faço um desafio. Escreva um livro. Conte uma boa história. Não esqueça de caprichar na forma. Edite, lapide cada frase, cada parágrafo. Revise. Imprima apenas um exemplar desse livro. Guarde o calhamaço num lugar bem seguro. Espere que o tempo faça o trabalho dele. Se for mesmo bom, em algum momento será reconhecido, dizem.
É uma aposta de resultado óbvio: o livro não irá a lugar algum. Carrego na imagem para refletir sobre um chavão do mundo literário, o papo de que cabe ao tempo decidir quais livros merecerão a eternidade (ou qualquer coisa nessa linha).
Na última edição da newsletter trouxe uma fala preciosa do professor João Cezar de Castro Rocha, crítico que acompanho há mais de década. Ele defende: o que importa não é a originalidade, mas a complexidade de uma obra. E essa complexidade na literatura é construída pela leitura, não pela escrita, completa João.
O professor falava da importância da leitura para que escritores elaborem uma literatura complexa. Dou um passo além: a leitura também é fundamental para que obras complexas sejam reconhecidas como tal.
São diferentes leituras de diversos leitores que iluminam virtudes, questionam problemas, aplaudem inovações e cogitam paralelos entre determinado trabalho e a tradição literária.
Resistem ao tempo os livros que são bem lidos, discutidos, analisados por diferentes perspectivas. Múltiplas visões compartilhadas que criam rotas possíveis para compreendermos essas obras.
É preciso de tempo para que essas leituras aconteçam, debates ocorram e ideias mais sólidas se estabeleçam, claro. Mas sem leitores críticos se debruçando sobre livros e deixando suas marcas, nada acontece, nada se constrói.
João aponta que Machado de Assis se tornou grande escritor porque, antes de tudo, foi exímio leitor. E virou autor incontornável porque outros tantos leitores competentes se dedicaram a ler e compartilhar impressões, análises, perturbações, discordâncias, possibilidades sobre sua obra.
É apenas em 1960, 52 anos após a morte do autor, que a pesquisadora estadunidense Helen Caldwell lança “The Brazilian Othelo of Machado de Assis” e consolida o debate sobre Capitu ter traído ou não Bentinho.
Só que em 1900, pouco depois do lançamento de “Dom Casmurro”, José Veríssimo já apontava o Bruxo do Cosme Velho como “o único talvez dos escritores brasileiros que na ficção se eleva até o geral, o simplesmente humano”.
Muita gente ajudou a pavimentar a estrada de décadas percorrida pela literatura de Machado até chegar a Helen. E que bom que contemporâneos do cara escarafuncharam seus livros antes que as maravilhas dessa obra já estivessem bem iluminadas. Não fosse lido e debatido ali, sabe-se lá o que seria de Machado hoje.
Há quem aposte na sabedoria do tempo para filtrar o que ler. Direito de cada um. No entanto, na verdade, essas pessoas esperam é que centenas, talvez milhares de outros leitores façam o trabalho de oferecer elementos que determinarão quais romances, contos, poemas serão dignos de atenção.
É mais fácil, cômodo, olhar para a arte já sabendo quais traços admirar, o que pensar dela. Essa mirada tranquila, ordenada, sem riscos só é possível graças à contribuição de muita gente. Contribuições cheias de ruídos, trombadas, inevitáveis erros. Faz parte.
São as leituras que garantem a permanência de um livro. São bons leitores que constroem os clássicos.
Leitores
Não viu o vídeo do João?
Está na edição passada da newsletter:
(Não consegui colocar vídeos do Instagram nesta edição, não sei se por incompetência minha ou se por culpa do Substack)
Livros X Boletos
Há algumas semanas fiz parte da bancada que entrevistou Fabiano Piúba na Sabatina PublishNews. Fabiano é o atual secretário de Formação, Livro e Leitura do ressuscitado Ministério da Cultura.
Já pro final do papo entrei num assunto que tem perambulando pela cabeça: como fazer com que pessoas sigam lendo quando ficam adultas e os boletos parecem roubar a atenção que antes davam aos livros? Aqui a entrevista completa.
Bartleby e Talese
“Minha natureza estrangeira faz com que eu não compre a política externa estadunidense nem a imagem dos meios de comunicação sobre os russos como vilões. Não sou exatamente uma pessoa popular no meu país, onde não há nuance, não há vacilação, não há ambiguidade… Não estou de acordo com a grande mensagem dos Estados Unidos, de que estamos do lado correto, do lado dos anjos. Não estamos, mas acreditamos estar. E não encontro oportunidade de expressar esse ponto de vista”.
É o que diz Gay Talese nessa rara entrevista para a ótima Gatopardo. Aos 91 anos, um dos maiores nomes da história do jornalismo está para lançar livro novo: “Bartleby and Me”.
Em diálogo com o icônico personagem de Herman Melville, será uma reunião de histórias colhidas por Talese entre profissionais que não costumam receber atenção da mídia: um porteiro, um motorista, uma atendente de farmácia…
A obra sairá nos Estados Unidos no segundo semestre, pela Harper Collins. Já fica como livro desta edição da newsletter que merece atenção de nossas editoras.
Nova York, capital latino-americana
Na semana passada o prêmio Pulitzer de Ficção foi para Hernan Diaz, argentino que vive nos Estados Unidos e escreve em inglês. A obra que lhe valeu o prêmio foi publicada aqui no Brasil pela Intrínseca como “Confiança” e parece contar uma história profundamente estadunidense.
Em todo caso, não é de hoje que a cultura latino-americana permeia a arte feita acima do Rio Bravo. Escrevi sobre isso numa coluna recente, com olhar para a literatura. Já Jorge Carrión se concentrou em Nova York mas extrapolou o mundo das letras para apontar a cidade como uma capital latino-americana, epicentro do New Latino Boom.
☕️ Um café
Desta vez a dica não é minha, mas da Gaía Passarelli. Ela listou 11 lugares para tomar um bom café em São Paulo:
(Endosso o Por um Punhado de Dólares, que recomendei em outra edição)
📚 O que chegou por aqui
“A gente aguarda o momento e a terra cede, mas a gente não luta, não é necessário. Eu imaginava o fim dos tempos como um fogo enorme ou um apagamento elétrico. O sol intermitente, a duplicação da lua, as estrelas dançando, a água devorando livros, os móveis flutuando. Mas não, um dia a terra começou a acariciar meus tornozelos e eu não resisti, a sensação era boa”.
Eis um trecho de “Oeste”, um dos mais de 50 contos breves (alguns brevíssimos) de “Madreselva”, livro de Ángela Cuartas, colombiana radicada em Porto Alegre.
A obra marca uma nova fase da editora Diadorim, que pretende dar mais atenção à literatura contemporânea. Tocam a casa os editores Maria Elena Morán, Flávio Ilha, João Nunes Junior e Jeferson Tenório.
📚 O que vem por aí
Já chegou alguma coisa aqui, vem mais um tanto por aí.
Em outubro celebraremos o centenário de nascimento de Italo Calvino, um dos meus escritores italianos favoritos. Gosto de como o cara alia leveza, humor e ironia em romances como “O Visconde Partido ao Meio”, que reli recentemente.
Graças à data que a Companhia das Letras já lançou dois livros de Calvino até então inéditos no Brasil: “Um Otimista na América”, sobre as andanças do autor pelos Estados Unidos, e “A Entrada na Guerra”, com crônicas sobre a Segunda Guerra Mundial.
No segundo semestre virão outros dois inéditos. “Nasci na América” é uma reunião de entrevistas. “Por Último Vem o Corvo”, publicado originalmente em 1949, é a primeira seleção de contos de Calvino.
Além disso, “Se um Viajante Numa Noite de Inverno”, “Por Que Ler os Clássicos” e “Todas as Cosmicômicas” ganharão novas edições. Audiolivros do italiano também começarão a chegar aos leitores-ouvintes.
A Companhia promete para outubro eventos que discutirão a obra de Italo Calvino. Para o ano que vem ainda devem lançar uma seleção de cartas do autor e uma reedição de “Os Nossos Antepassados”.
Me digam nos comentários: gostariam de um episódio do podcast sobre Calvino?
🍷 Um vinho
Sempre uma emoção achar vinho bom na faixa dos 40 reais.
Melhor ainda quando a vinícola manda bem em mais de uma uva, entrega pelo menos o básico do que esperamos de cada casta. A linha Chac Chac, da argentina Las Perdices, se garantiu por aqui tanto com a malbec quanto com a cabernet franc.
Vinícolas da Argentina, aliás, vêm fazendo ótimos cabernet francs. Recomendo que deem atenção.
📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝 Resenha do romance “Doze Dias”, de Tiago Feijó.
📝 Toda boazinha? Rita Lee fez sucesso com autobiografia por não ser chata pra caralh*
🎙️ Caminhos para criar a própria newsletter: papo com Gaía Passarelli:
📝 Pulitzer para um argentino que escreve em inglês e os disfarces de um autor.
📝 Resenha de “Niéde Guidon - Uma Arqueóloga no Sertão”, de Adriana Abujamra.
🎙️ Virei outra pessoa quando me tornei leitor: papo com José Falero:
Me lembro de um crítico e professor de literatura que disse para não perdermos tempo com autores contemporâneos, principalmente os que estavam no mesmo patamar que a gente, apenas começando a carreira de escritor. Só os clássicos valeriam a pena, segundo ele, pois suas qualidades literárias já estavam chanceladas pelo tempo. Sempre discordei disso. Se não lermos e avaliarmos os contemporâneos, como surgirão novos clássicos?
Quero um podcast sobre Ítalo Calvino 🤗