Não contem com o fim das livrarias
Nem só de organizações gigantescas se faz o mundo. Não por enquanto, pelo menos.
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Não contem com o fim das livrarias
Um sujeito chega na loja e pergunta por certo livro. Ao ser informado do preço, tira o celular do bolso e faz uma pesquisa rápida na internet. Cai, invariavelmente, no site que domina as vendas virtuais. Se encontra um preço mais baixo do que o dito pelo livreiro, reclama. Não teria como fazer um desconto, igualar as cifras? Não, não teria, amigo. Cada negócio tem as suas particularidades. Então o sujeito vai embora e o livro fica para trás.
Com alguma variável, essa passou a ser uma história comum de se escutar da boca de vendedores de livros. Após a falência da Livraria Cultura ser decretada pela justiça, processo agora suspenso, voltou a ganhar força o papo de que as lojas virtuais seriam as responsáveis pela derrocada de grandes redes de livrarias físicas, que ganham contornos de anacronismos fadados à extinção, praticamente peças de museu.
Essa ideia já foi mais forte. Em 2017 a francesa Fnac anunciou a saída do Brasil. No final do ano seguinte, tanto a Cultura quanto a Saraiva - também enrolada em processos judiciais e em briga para se manter viva - entraram com pedidos de recuperação judicial. Eram as maiores redes do país e, juntas, acumulavam perto de R$ 1 bilhão em dívidas. Sim, isso mesmo: 1 bi, com B.
Ao mesmo tempo, a Amazon, após seis anos no Brasil, firmava-se por aqui. Enquanto o mercado editorial temia quebradeiras e fazia malabarismos para lidar com os calotes, a megacorporação aparecia com a fama de boa pagadora (fama que mantém até hoje). Desde então, surgiram editoras com modelos de negócio pensados para ter a Amazon como principal ponto de venda, quando não exclusivo.
O poder financeiro, as pressões nas negociações e a disposição para garrotear concorrentes são outras características conhecidas da empresa fundada por Jeff Bezos. Ao mesmo tempo, seguem emperradas iniciativas como a Lei do Preço Fixo, que, diferente do sugerido pelo nome, não pretende congelar o mercado, mas regular a taxa de descontos sobre lançamentos, diminuindo o abismo de valores que as novidades podem ter de um ponto comercial para outro. Não é de se estranhar a suposição que muitos faziam e ainda fazem: a multinacional dominará todo o mercado.
De fato, ainda que ocultem números, avançaram e seguem avançando sobre um setor que em 2022 movimentou R$2,54 bilhões e vendeu 58,6 milhões de exemplares, segundo dados colhidos pela Nielsen BookScan e divulgados pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros. Questões de impactos menores como a pirataria de dimensões ainda pouco conhecidas, um número cada vez maior de editoras e autores que negociam direto com os leitores e crescimento de eventos focados em vendas com descontos ajudam a pintar um cenário ainda pior para as livrarias físicas.
Fim das livrarias físicas?
Parafraseando Umberto Eco, no entanto, arrisco dizer: não contem com o fim das livrarias.
Há o outro lado dessa história. Livrarias que são referência no setor, como a Martins Fontes, a Travessa e a da Vila, tocam seus caminhos com ajustes aqui, eventuais crescimentos ali. A Curitiba segue com planos de expansão. A Leitura aproveitou parte do vácuo deixado por Saraiva e Cultura e ainda em 2020 se tornou a maior rede do país no setor. Hoje conta com 99 lojas, número que triplicou na última década, e privilegia espaços de tamanho razoável, não as megalojas que davam a cara das concorrentes caídas.
Essa é uma chave fundamental para pensarmos no futuro das livrarias. Não é só no Brasil e não é de hoje: parece mesmo estar em processo de iminente extinção o modelo de lojas gigantescas onde se podia encontrar desde bonequinhos colecionáveis até os últimos lançamentos do mercado editorial, mas raramente preciosidades de áreas específicas que compõem o catálogo das melhores editoras. Megalomania e livrarias físicas não combinam.
O que levaria alguém a abrir mão da compra pela internet e se deslocar até uma loja para, talvez, pagar mais caro por um produto? A resposta certamente não passa apenas pelo preço do que a pessoa está buscando. Livrarias físicas são lugares onde leitores vão não só para encontrar o que procuram, mas também descobrir o que sequer supunham existir. É passeando por prateleiras bem recheadas e organizadas que podemos esbarrar em obras surpreendentes, conhecer nomes que nunca estiveram em nosso radar, descobrir novas tendências ou antigas tradições.
É uma lógica bastante diferente daquela entuchada pelos algoritmos. O porvir do negócio das livrarias físicas passa por aí: oferecer aos leitores uma experiência muito mais complexa e completa do que apenas vender os livros que procuram. São espaços que tendem a ter menos o ar de um varejo qualquer e mais o de polo cultural para onde as pessoas vão porque se sentem bem e sabem que lá poderão encontrar gente de confiança para trocar ideias sobre livros, sobre artes, sobre a vida. Soa saudosista? Talvez. É, de certa forma, um olhar para frente buscando respostas fundamentais no passado.
Sem desprezar as ferramentas virtuais, cabe ao empresário livreiro transformar a livraria num lugar que acolha sua comunidade de leitores ao mesmo tempo em que seja bem administrada (e isso inclui honrar compromissos com toda a cadeia do livro) e tenha uma cara própria, com acervo caprichado, talvez focado em interesses específicos. Lembro aqui da Companhia Ilimitada, que nasceu em 1997 e, apostando em programações culturais e diálogos intensos com leitores e possíveis parceiros, tornou-se referência de literatura infantil na zona norte de São Paulo.
A vez das pequenas
Livrarias pequenas, independentes, localizadas fora de shoppings e bem resolvidas quanto ao tipo de livro que desejam vender e qual público querem atender estão em alta em boa parte do mundo, apesar de malabarismos para manterem as contas no azul. Não é por acaso que nos últimos anos vimos surgir em São Paulo diversos negócios do tipo: Mandarina, Ria, Megafauna, Miúda, Gato Sem Rabo, Livraria da Tarde, Livraria do Brooklin, Banca Tatuí (esta praticamente uma veterana)...
Para citar uma localizada em lugar de perfil bem diferente da capital paulista, temos a Livraria da Praça, aberta há alguns meses em Cássia, cidade mineira com cerca de 18 mil habitantes. E me lembro também da charmosa Ufa Malufa, de Santo Antônio do Pinhal, quase um vilarejo na parte paulista da Serra da Mantiqueira com uma população de menos de 7 mil moradores. Nem só de organizações gigantescas se faz o mundo. Não por enquanto, pelo menos.
É dos Estados Unidos que vem um exemplo que pode servir de norte. Fundada pelo poeta Lawrence Ferlinghetti em 1953 e tida como um símbolo beat, a City Lights, de San Francisco, penou durante a pandemia. Para segurar as pontas, decidiu passar o chapéu entre os clientes. Não demorou muito para que arrecadasse meio milhão de dólares e garantisse a sobrevivência. A relação com os leitores alimentada ao longo de décadas foi decisiva para tal.
A cada dia parece aumentar a fatia do mercado dominada pela Amazon, é verdade. Mas tudo indica que uma outra fatia, talvez menor e certamente mais diversa e interessante, seguirá à disposição dos leitores. O futuro dessas livrarias físicas passa por conseguir reunir entre suas prateleiras menos pessoas como aquelas pintadas no início do texto e mais leitores como os que mantiveram a City Lights de pé.
*Esta é uma versão bem mais detalhada da análise que publiquei na coluna do Uol no dia 16 de fevereiro.
📚 Sugestão de leitura
Referência profissional para mim, o jornalista e crítico cultural espanhol Jorge Carrión tem um livro bem gostoso de ler no qual relata suas andanças por diversas livrarias do mundo. Falo de “Livrarias - Uma História da Leitura e dos Leitores”. Saiu aqui pela Bazar do Tempo traduzida pela Silvia Massimini Felix. Sim, o Brasil está no roteiro de Jorge. E sim, já escrevi a respeito do trabalho do colega.
Quais são as suas livrarias favoritas?
A pergunta rendeu boas respostas no Instagram:
Uma crônica sobre o tal ChatGPT
Há algumas semanas que pipoca pela internet deslumbramentos pelo tal ChatGPT, inteligência artificial capaz de gerar textos razoáveis (e nem tão confiáveis) para responder determinadas perguntas. Mas quem tem e sabe usar o cérebro pode ficar tranquilo, como o craque Braulio Tavares comprova nesta crônica. Um trecho:
“Como a minha condição de mero programa recombinatório de informações acessíveis no metaspaço me impede de emitir opiniões que possam sugerir uma visão desnecessariamente crítica ou inconvenientemente laudatória, posso apenas dizer que quem quiser ter uma idéia real das habilidades do dégas, do de-cujus, do famisgeraldo... basta se-coçar, puxar carteira e cartão, e comprar um livro de sua autoria, porque os há e muitos, expostos à cupidez pública nas boas casas do ramo”.
Para os muitos fãs de Elena Ferrante
Cauana Mestre, Nara Vidal, Francesca Cricelli, Giuliana Bergamo, Isabela Discacciati, Camilla Dias, Maria Carolina Casati, Isadora Sinay e a organizadora Fabiane Secches. É esse time de professoras que estará à frente dos nove encontros de “Lendo Elena Ferrante”, curso voltado para quem quer ter um panorama da obra e se aprofundar nos romances da autora da “Tetralogia Napolitana”. Os encontros serão virtuais, às terças, das 19h às 21h, entre os dias 7 de março e 2 de maio. Custa R$550,00.
☕️ Um café
Já tomou algum fermentado?
Gosto demais do trabalho da 4Beans. Os cafés deles só não frequentam mais a minha casa por dois motivos: são de Curitiba e gosto de conhecer torrefações novas. Da última vez que passei por lá, trouxe na mala um dos melhores cafés que já tomei na vida: o Starmaya, uma pancada de rara complexidade. A 4Beans manda bem com fermentados, praia em que eles têm o Salada de Frutas como opção afável ao bolso. É boa essa reportagem publicada pelo Uol sobre cafés que passam por fermentação.
📚 O que chegou por aqui
A Companhia das Letras acaba de lançar uma nova edição de “Santa Evita”, romance do argentino Tomás Eloy Martínez (tradução de Sérgio Molina). No centro da trama, tudo o que o corpo embalsamado de Evita Perón, figura fundamental da história da Argentina no século 20, viveu após a sua dona desencarnar. Quem leu não se surpreende com notícias como a de torcedores que planejavam roubar o coração de Maradona após a morte do craque. Guardo boas lembranças da leitura feita há mais de década.
📚 O que vem por aí
A Dublinense abriu a pré-venda de “Para Onde Vão os Guarda-Chuvas”, portentoso romance de 544 páginas e olhar para o Oriente com o qual Afonso Cruz venceu o Prêmio da Sociedade Portuguesa de Autores em 2013. Sim, impressiona a frequência com que pipocam novidades de Afonso por aqui. Mas o cara é bom.
Já escrevi sobre “Vamos Comprar um Poeta”, “O Vício dos Livros” e “Jesus Cristo Bebia Cerveja” (aliás, dividi uma surpreendente mesa com ele sobre cerveja artesanal na última Bienal do Livro de SP, foi bem legal 🍻). Também curti “Princípio de Karenina”, que chegou por aqui pela Companhia das Letras em meados de 2022.
📚 O que poderia vir (Alô, editoras!)
Ainda gostamos do Enrique Vila-Matas? Pergunto porque me lembro do espanhol, que é bom, ocupando o cargo de melhor escritor de todos os tempos da última semana em 2012, quando esteve no Brasil para a Flip. Na época seus livros saíam pela finada Cosac Naify e muita gente se deslumbrava com “Dublinesca”. Pois bem, há alguns meses saiu um novo romance de Vila-Matas: “Montevideo”, que, pelo título, já tem a minha simpatia.
🥃Uma cachaça
Fiquei bravo. Não encontrei mais uma das minhas cachaças favoritas da vida no mercado onde sempre a comprava. Sigo sem uma garrafa em casa, mas indico para todo mundo. Falo da Colombina Tradicional, maravilha de 41,5% de álcool envelhecida durante três anos em grandes cubas de jatobá, que dão um leve toque salgado à bebida (e isso é ótimo, podem confiar). Além de tudo, o rótulo dela é um charme. A cachaçaria é mineira de Alvinópolis e existe desde 1920.
📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝 Falência da Cultura: as livrarias irão todas morrer?
🎙️ Um pouco de Clarice Lispector para o carnaval:
📝 A improvável força que Haruki Murakami me deu durante uma meia maratona.
📝 “Afirma Pereira” em HQ: o romance de Antonio Tabucchi pelos traços de Pierra- Henry Gomont.
🎙️ Marcel Proust e os ecos do colossal “Em Busca do Tempo Perdido”: papo com Ricardo Lísias sobre o centenário de morte do grande escritor francês:
"E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha ao encontro da minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara" - trecho de “Restos de Carnaval”, conto de Clarice Lispector.
Adotei mais essa edição! Sobre livrarias há também o caso da Barnes and Noble, que certamente vc conhece e tem esse plano de deixar de lado o estilo megastore para apostar mais em curadoria. Pra mim é o futuro. Eu adoro o poder do aleatório que livrarias e tvs a cabo conservam, de nos apresentar coisas totalmente inesperadas e muitas vezes geniais. Muitos livros queridos da vida surgiram na minha frente em bons passeios nas livrarias. Um abraço!
Uma das coisas mais gostosas de SP são as livrarias de rua. Na minha terra, estão extintas (sou capixaba). Gostei muito dos argumentos que vc trouxe e assim como a Lou ali embaixo, lembrei da Barnes and Noble.
Ia comentar do rótulo da cachaça, lindimais.
beijo.