Repassava “Encaixotando Minha Biblioteca”1 para pescar grifos e anotações quando um papel ordinário, comprido, de cor meio opaca, pulou das páginas. Imediatamente minha cabeça deixou o livro de Alberto Manguel e viajou para um momento bem legal da vida.
O bilhete de entrada para estrangeiros do Parque Provincial Aconcagua é feinho que só. Mas encontrá-lo durante o trabalho trouxe um bom respiro num dia comum. Foi na cadeia de montanhas, a coluna da América do Sul, que vi a neve pela primeira vez.
Perto da fronteira da Argentina com o Chile, avistamos um dos pontos mais altos do mundo, o tal Aconcágua, enchapelado por uma nuvem exibicionista. Numa viagem pensada para comer e beber bem, brincar no gelo e arremessar bolas de neve contra as orelhas de outros marmanjos entrou para minha história.
Por coincidência, meti a entrada do parque entre páginas em que Manguel acenava para terras estrangeiras. Aqui o bibliófilo está traduzido por Jorio Dauster:
“Embora a história nos tenha ensinado que nada dura para sempre, o impulso de criar diante da iminente destruição, de fincar raízes em terras estrangeiras e reproduzir modelos ancestrais, de montar novas bibliotecas, é um impulso potente e insaciável”.
Não faz muito tempo que, em viagens, comecei a guardar papeis que passam pela minha mão nas leituras da vez ou em livros comprados na ocasião. O recibo de uma livraria de Montevidéu parou no meio das páginas de Gabriela Cabezón Cámara. Um bilhete de metrô de Barcelona marca um livreto de Irene Vallejo.
“La Casa de los Conejos”, de Laura Alcoba2, uma pena, não carrega nenhuma surpresa dentro de si. Lembro de ter sido indicação de um livreiro da supervalorizada, algo cafona e pouco acolhedora Ateneo Grand Splendid, em Buenos Aires. Pelo menos uma etiqueta da livraria ou o comprovante fiscal poderia ter ficado no exemplar.
É uma forma de fazer com que minhas andanças se misturem aos livros que carrego ou encontro pelo caminho. Com sutileza, personalizo o exemplar com marcas que só farão sentido na minha imaginação - e talvez na da Bel, minha esposa, a melhor companhia.
Entrelaço a lembrança de algo vivido, de um lugar por onde passei, com o que autores eternizam em livros pelos quais tenho apreço. Não deixaria fagulhas de bons momentos em títulos dispensáveis, fadados às pilhas de doações.
Revisitei Manguel para o livro que começo a escrever. Também repassei “La Traducción del Mundo”, de Juan Gabriel Vásquez3. Neste, me surpreendi com um combo de pequenos agrados. O cupom fiscal e o comprovante do cartão informam: a ótima série de conferências veio da catalã Lata Peinada, especializada em literatura latino-americana.
Muitas vezes a coisa é anárquica. Ainda no Vásquez, topo com o cartão de um café de Yirgacheffe, região da Etiópia, tomado em Sevilha. Honestamente, não me lembro da bebida em si, mas bem em frente à cafeteria, chamada Selva, encontrei uma torta basca que me faria voltar à Andaluzia. Sou fã desses doces meio insossos.
Não é algo original, sei disso. Fotos da família, contas vencidas, bilhetes amorosos, anotações quaisquer… Muita gente guarda muita coisa entre os volumes da biblioteca.
Mas livros são mesmo objetos fantásticos, não? Ostentam histórias fascinantes em suas páginas. E entre uma folha e outra também podem se tornar únicos ao carregar um pouco de nós, servir de guardião de simples penduricalhos capazes de reavivar nossas alegrias.
Clube de Leitura da Página Cinco
Os próximos encontros do Clube de Leitura da Página Cinco, exclusivo para os assinantes que pagam pela newsletter, serão em setembro, novembro e dezembro!
Agora em setembro, no dia 30, leremos “Diorama”, da Carol Bensimon (Companhia das Letras).
Em novembro, no dia 18, será a vez de “Cidadã de Segunda Classe”, da nigeriana Buchi Emecheta (Dublinense).
E em dezembro, no dia 16, para fechar bem o ano, será a vez de “O Castelo”, de Franz Kafka (diversas editoras).
Aqui há mais o informações sobre o Clube de Leitura da Página Cinco.
Bestiário de encher os olhos
“No trabalho de Leonora o uso do inconsciente e do onírico que norteiam o surrealismo se uniram a influências muito particulares, como a arte da América Central e, em maior destaque, seu encanto pelas lendas celtas. O feminismo se mostra um ecofeminismo. Ao explorar a identidade como um valor livre do corpo e aberto à transformação, a artista amplia nossos caminhos e propõe um bestiário de encher os olhos”
escreve sobre Leonora Carrington, do ótimo “A Corneta” (Alfaguara, tradução de Fabiane Secches):Tempo e paciência
“Demorar-se em um livro grandioso jamais será perda de tempo, pois enquanto aguardamos nas partes mais lentas do passeio, ‘aprendemos um bocado sobre o mundo — o que, afinal de contas, é a melhor coisa que pode nos acontecer nesta vida’. Eco refere-se à obra-prima de Dante, mas penso que isso aplica-se a qualquer livro que de fato mereça ser lido. Se for para acelerar a experiência, é melhor não lê-lo. As coisas que importam têm seu próprio tempo e pedem paciência, mesmo em tempos apressados como estes”.
e as leituras que merecem nosso tempoMulheres nas HQs
“Dos 1.168 quadrinhos analisados, 214 tem pelo menos uma mulher no time criativo - 18,3% do total - e apenas 85 são de artistas nacionais - 7,3% do total e 39,7% da quantidade de obras com mulheres.”
Vale prestar atenção na série de números levantados pelo
Kafka
“Max Brod cita um episódio curioso de sua amizade com Kafka, na juventude. Kafka foi visitar Brod para bater papo, e ao chegar lá teve que atravessar uma sala onde o pai de Brod estava deitado num canapé, dando um cochilo. Ele deve ter feito algum ruído ao caminhar, porque o homem, semi-adormecido, fez algum movimento, e Kafka, muito discretamente, disse em voz baixa: “Considere-me um sonho”, e saiu da sala. ”
Braulio Tavares escreve sobre Franz Kafka no Mundo Fantasmo.
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Companhia das Letras
Edhasa
Alfaguara
Acho que essa é uma das melhores sensações do mundo, reencontrar uma lembrança entre livros. Presentes que a gente deixa pra si!
Certa vez guardei 50 reais dentro de um livro e esqueci qual foi...nunca mais achei 🥹