Leitores X Inteligência artificial: o que só nós podemos fazer
A geringonça pode destrinchar Vidas Secas, mas jamais conseguirá sentir a morte de Baleia
Não é segredo para ninguém: a pirataria de livros rola solta por aí, normalmente disfarçada de PDF amigo. Mas nesta semana a cara de pau atingiu níveis espetaculares.
A Meta (dona do Facebook, Instagram, Whatsapp…) foi acusada de baixar ilegalmente, eufemismo para piratear, quase 200 terabytes de livros para treinar suas geringonças de inteligência artificial.
Numa conta de padaria, calculo: o pacotão deve ter muitas dezenas de milhões de títulos. Só para comparação, o acervo de obras gerais da nossa Biblioteca Nacional tem dois milhões de itens.
Nenhuma surpresa, limites éticos foram chutados para longe pela Meta. Também não será surpresa se conseguirem demolir qualquer barreira legal.
Não está claro quais tipos de livros os caras piratearam. Independente do que for, as novas tecnologias aprenderão muito com eles. E também, num segundo momento, poderão fazer rapidamente apurações que talvez levassem anos de empenho de muitos humanos.
Penso na literatura. Essas tecnologias têm capacidade de propor caminhos para análises de personagens, enredos, estruturas… Poderão devorar estantes inteiras em pouco tempo e apresentar possíveis relações entre os livros. Farão - e já fazem - o trabalho de mapear, organizar e ajudar a compreender quantidades imensas de dados.
Se prestará ou não e quais impactos isso causará são assuntos que precisamos observar, debater e, se possível, delimitar. O monstrengo, no entanto, está aí, gostemos ou não.
Falei de dados. E é isso o que os programas deglutem e colocam para fora: dados. Não importa se estamos falando de tabelas do Brasileirão, dos valores de uma planilha, da análise de imagens ou de literatura. Para o bicho, tudo são dados. Simples assim.
E a literatura jamais é simples. A literatura não é frígida. Não é somente a soma de informações contidas num livro. A inteligência artificial pode consumir os melhores livros do mundo em velocidade e volume espantosos. Ainda assim, jamais conseguirá sequer se aproximar do âmago da literatura.
Por quê? Essa é fácil. Porque ela não é uma leitora.
Apenas nós, humanos, conseguimos ler uma obra de arte e vivenciar o momento crucial em que ela nos toca de forma mais profunda. A inteligência artificial, mesmo com toda sua sofisticação, nunca poderá se fundir à literatura com a sua individualidade, com a sua própria história, com a sua visão de mundo.
A literatura presente nas páginas se completa com a vida do leitor, vida que a inteligência artificial não tem.
A leitura é sempre pessoal, única, conectada não a trocentos terabytes, dados e algoritmos, mas àquilo que o leitor passa, vive, planeja, sonha. Livros dialogam com nossas memórias boas e ruins, com o nosso presente cheio de dúvidas e com nossa expectativa de futuro.
E com as outras leituras feitas, claro. Leituras jamais escaneadas por geringonças computacionais, mas marcantes pela forma como cada livro entrou na na vida, como cada cena ou personagem ressoou no íntimo.
Qualquer inteligência artificial pode destrinchar “Vidas Secas”, mas jamais conseguirá sentir a morte de Baleia. Isso, só nós, leitores, podemos fazer.
Clube de Leitura Página Cinco
Como vocês talvez saibam, estão definidos os próximos livros do Clube de Leitura Página Cinco.
No dia 17 de fevereiro, às 20h, conversaremos sobre “Detalhe Menor”, da palestina Adania Shibli (Todavia, tradução de Safa Jubran).
Em abril será a vez de “A Casa de Barcos”, de Jon Fosse (Fósforo, tradução de Leonardo Silva Pinto).
Já em junho, papearemos sobre “Te Dei Olhos e Olhaste as Trevas”, de Irene Solà (Mundaréu, tradução de Luis Reyes Gil).
O Clube de Leitura da Página Cinco é exclusivo para os leitores que contribuem com uma grana para a newsletter. Aqui está a relação dos livros que já lemos.
Espero que você possa se juntar ao Clube. E se não puder ou não quiser participar, mas vê valor no meu trabalho, considere colaborar com a Página Cinco.
A gente lê porque é bom
“A gente lê para reconhecer a miséria do mundo, para fazer parte de uma humanidade que raras vezes sabe para onde está indo, para viver um pouco o que outros vivem, para escapar da solidão, para rir, para se emocionar, para passar o tempo. A gente lê porque é bom. A leitura não faz você melhor, nem pior” -
Deixar de ler não mudará nada
“Casos como o do sujeito, o meu sujeito, o do “húbris”, não vão se resolver reclamando muito no instagram, cuspindo na foto (ou no sujeito) ou jogando os livros no lixo. Talvez se resolvam na justiça - espera-se que se resolvam na justiça, em parte. Mais do que isso, casos como o dele têm que servir para iluminar estruturas: chamar atenção para os fatos e atos que reproduzem e sustentam os homens horríveis. É sobre esses fatos e atos que se precisa tomar atitude.
Deixar de ler CORALINE provavelmente não vai mudar nada nesse mundo” -
Também sou Silverista
“Eu era feliz e sabia. Também era um moleque que imitava, ou tentava imitar, o Silvério. Eu era, e ainda sou, Silverista de carteirinha. Se faz falta ouvir o José Silvério no rádio, passar uns minutos ouvindo suas narrações mais clássicas me coloca num lugar de nostalgia” -
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Realmente, Rodrigo, a máquina nunca conseguirá ter prazer estético ao "ler" um livro. Essa experiência ela não terá. Por outro lado, eu tenho medo de que a facilidade com que ela vai interagir com outras dimensões da obra possa levar grande parte das pessoas a não descobrir e
a não vivenciar essa dimensão subjetiva do livro. Tipo, botar a IA pra ler, interpretar, relacionar com outras obras, fazer todas as considerações e se lixar pra experiência da leitura, que ficaria cada vez mais restrita a uma minoria de pessoas. A gente sabe que a leitura de certa forma sempre foi uma atividade limitada a um número pequeno de leitores. Mas, a partir do desenvolvimento da IA, com o passar dos anos, a descoberta dessa dimensão subjetiva da leitura pelos que seriam os potenciais novos leitores pode ficar bastante afetada. O que iria restringir mais ainda o número dos que teriam uma real experiência de leitura, e por consequência um entendimento mais verdadeiro do que é a literatura. Tomara que nada disso aconteça. Mas, como professor, a possibilidade de isso acontecer bateu na minha mente. Na verdade o assunto acaba nos levando a mais longe; a temer o "esquecimento" da dimensão humana que existe em cada um de nós por parte de um número elevado de pessoas. Vou parar por aqui porque esse tema nos leva a muitas outras questões preocupantes...
sempre faltará subjetividade à inteligência artificial. e nada mais bonito na literatura do que a subjetividade, seja do autor, seja do leitor.