Diferentes formas de escrever sobre violência
Um papo e três livros de Alia Trabucco Zerán,
Uma edição diferente na “Da Biblioteca” desta semana.
Há alguns dias, bati um papo com a chilena Alia Trabucco Zerán, que será uma das convidadas da Flip deste ano. Ela é autora dos romances “A Subtração” (Moinhos) e “Limpa”, além do livro de ensaios “As Homicidas”. Os dois últimos saíram pela Fósforo, todos foram traduzidos por Silvia Massimini Felix.
Hoje trago para cá o longo texto que publiquei na quarta-feira na coluna do Uol. É uma oportunidade a mais para que conheçam tanto o trabalho quanto um pouco de Alia.
Por ser uma edição excepcional, também é uma edição de “Da Biblioteca” aberta a todos os assinantes. Ainda assim, se você quiser e puder pingar uma grana para que a Página Cinco siga firme, eu agradeço. Colaboradores têm acesso ao Clube do Leitura, a encontros mensais e à íntegra de todas as dicas de livros.
Alia Trabucco Zerán e as diferentes formas de escrever sobre violência
Para Estela, empregada doméstica que protagoniza “Limpa”, ficção mais recente da chilena Alia Trabucco Zerán, a morte sempre anda em trio. Uma perda é sucedida por outra, que logo leva a mais um vazio.
Num dos momentos tristes do romance, a morte parece simbolizar a perda da ternura possível. Da chance de a personagem principal ter uma companhia naquela casa onde passa os seus dias entre os afazeres do trabalho, o zelo pelos patrões e o quartinho onde deve se abrigar nas poucas horas vagas.
É uma morte que faz com que lembremos de Graciliano Ramos. Compartilho com Alia essa conexão. Falo de como aquela passagem de “Limpa” me remeteu a uma das cenas mais tristes da literatura brasileira.
Após ouvir meu comentário, Alia diz admirar o trabalho de Graciliano, especialmente “Vidas Secas”. “É um dos meus livros favoritos. É um dos romances mais desoladores da literatura latino-americana e mundial. É um livro central na minha biblioteca”, conta.
Aos 41 anos, Alia virá pela primeira vez ao Brasil daqui a algumas semanas. Será uma das convidadas da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, que neste ano acontecerá entre os dias 30 de julho e 3 de agosto. A chilena é dona de uma obra em que a morte, especialmente a morte violenta, é tratada de forma distinta de livro para livro. E há mais ecos de literatura brasileira em seus escritos.
Estela e Macabéa
Desde o começo, sabemos que uma das mortes de “Limpa” será a da filha dos patrões de Estela, garotinha traiçoeira que a empregada doméstica ajudou a criar. Ao se dirigir a um interlocutor oculto, Estela dá o seu depoimento sobre tal fim.
Recusa-se, no entanto, a se restringir à fatalidade. Precisa repassar a sua história para que todos possam entender melhor o que ocorreu. “Imploro para que não se exasperem. A vida tende a ser assim: um pingo, um pingo, um pingo, um pingo e depois nos perguntamos, perplexos, como é que estamos encharcados”, lemos em certo momento.
É a chance de narrar a própria vida a, raridade, ouvidos atentos.
Estela precisou se distanciar de sua família do sul do Chile e entregar seus dias a satisfazer os caprichos dos empregadores em Santiago. A partir de sua voz que Alia esmiúça uma das questões de classe que causam incômodo não só no Chile, como bem sabemos. Falo do papel das empregadas domésticas, de seus direitos e deveres, sonhos e obrigações, ambições e frustrações.
“É um trabalho que incomoda socialmente porque é feito por pessoas invisibilizadas e toca em pontos de classe e de gênero que continuam não resolvidos”, diz Alia. “Foi um desafio construir um romance narrado em primeira pessoa por uma trabalhadora de uma casa particular. Buscar essa voz que me trazia perguntas e desafios para os quais eu não tinha respostas”, complementa.
Estela pode ser vista como uma irmã literária de Macabéa, também empregada doméstica, aquela que “pertencia a uma resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito”, como escreveu Clarice Lispector. “A Hora da Estrela” esteve em sua escrivaninha ao longo de toda a escrita de “Limpa”, conta Alia.
“Volto a Clarice, que é muito lida na América Latina, não só pela ficção. Leio também como autora de não ficção, alguém que tinha um olhar muito singular sobre o seu tempo, sobre problemas que não têm a ver apenas com o Brasil”, comenta a chilena sobre a influência.
Homicidas
“Limpa” está profundamente ligado a outro livro de Alia: “As Homicidas”, publicado por aqui em 2023. Trabalho de não ficção, nele a chilena revira arquivos e vasculha memórias para escrever ensaios sobre quatro mulheres que cometeram assassinatos.
Um aspecto chama a atenção no olhar de Alia para essas histórias. Foram crimes que chocaram as pessoas não apenas pelas mortes em si, mas por terem sido executados por mulheres, subvertendo estereótipos associados ao gênero, como se fosse uma surpresa constatarem que maldade e violência não são traços exclusivos dos homens.
“A simples ideia de uma mulher dominando um homem no terreno da violência, que é cultural e simbolicamente masculino, causaria reações raivosas dentro e fora dos tribunais”, escreve a autora em um dos ensaios. “Mais uma vez, as transgressões à lei do gênero antecipam a transgressão penal”, constata em outro.
Uma das motivações de Alia nessa empreitada foi justamente romper com reduções feitas e exigidas de cada gênero:
“O humano tem uma ampla variedade de afetos. Um homem pode expressar sua fragilidade e uma mulher, sua raiva. Quando uma mulher expressa a sua raiva, a sociedade tenta colocá-la de volta no que seria o seu lugar, um lugar de passividade, submissão. As mulheres, quando cometem um assassinato, não transgridem apenas a lei penal, mas também a feminilidade [que lhes são incutidas]”, diz a autora em nossa conversa.
Um dos casos investigados por Alia em “As Homicidas” é o de María Teresa Alfaro, empregada doméstica com uma história que continuou a revirar sua cabeça mesmo após a escrita do ensaio.
“Foi um caso que me perturbou não só pelo tabu que é o assassinato de crianças. Mas também por ser um crime que recebeu muita atenção em sua época [década de 1960], mas depois não foi retomado em nenhuma obra”.
Coube à escritora, então, partir do que fez María Teresa Alfaro para criar a história de Estela, que em nenhum momento deve ser vista como mera projeção de sua correspondente real. Em “Limpa”, as mortes aparecem de maneiras muito diferentes daquelas que encontramos em “As Homicidas”.
Forma para a violência
Como dito, a morte factual e as mortes simbólicas – o fim de uma era, de uma fase da vida, de projetos políticos, a morte do futuro… – estão no coração da obra de Alia. “A morte é um tema central da literatura porque é um tema central do humano. Meus três livros abordam a morte por certa perspectiva, que é a da violência”.
Romance de estreia de Alia, “A Subtração” foi publicado em 2014 e chegou ao Brasil em 2020. Sua versão em inglês foi finalista do The Man Booker International Prize de 2019. Nele, o leitor acompanha a jornada dos jovens Iquela, Felipe e Paloma, filhos de militantes que se engajaram contra a ditadura chilena.
O trio sai de Santiago e ruma para Mendoza, na Argentina, para tentar encontrar o corpo da mãe de Paloma. No livro, nos deparamos com o Chile da redemocratização e com a geração que veio depois da ditadura de Pinochet, mas que segue assombrada pelos sequestros, desaparecimentos, assassinatos e demais horrores praticados pelos militares.
“Limpa” é um relato em primeira pessoa no qual conhecemos desde o início o drama que aparentemente move a história – aos poucos percebemos que é no avolumar de gotas e mais gotas a encharcar a protagonista que está a parte crucial da trama. “As Homicidas” reúne ensaios em que há espaço para imagens, poemas e até para a criação ficcional. E “A Subtração” é um romance fragmentado, com intensa alternância de vozes.
Por mais que certas obsessões estejam presentes nos três títulos, o estilo de Alia parece se metamorfosear de livro para livro, seguindo a premissa de que cada história exige uma forma que seja condizente com aquilo que está sendo contado.
“Qual forma terá um texto? Essa é a questão literária a ser respondida na escrita. Seria impossível ‘A Subtração’ ter um texto convencional, com começo, meio e fim, narrado em terceira pessoa. A fragmentação era fundamental para tentar construir um relato sobre a violência da ditadura”, exemplifica.
É durante a própria escrita que muitas vezes o caminho ideal se revela. Não basta apenas que a escrita funcione, é preciso que faça sentido naquele mundo que está sendo criado ou recriado. “Como narrar a violência da ditadura? Um romance estruturalmente perfeito, linear, não tem sentido. Então busco outra forma. Por isso meus livros são formalmente muito distintos, e me interessa que seja assim”.
sempre que falam dos chilenos eu me conecto... terra do meu véio!
Rodrigo, bom dia. Ler as suas colunas, muito boas por sinal, me traz um sério problema: onde achar tempo para dar conta da pilha de livros se avoluma.
Abs