📚 Como são as leituras de um jornalista que escreve sobre livros
Pode até parecer lorota: às vezes torço para que sobre um tempo para ler por mero prazer
Na semana passada o foco estava em “Salvar o Fogo”, novo romance de Itamar Vieira Junior. Lia um tanto de páginas por dia no computador, num PDF, para escrever a resenha que publiquei na coluna do Uol. Há livros que, pelas expectativas criadas, passam na frente de todos os outros. São cada vez mais raros, mas ainda existem. O estrondoso sucesso de “Torto Arado” fez com que a novidade de Itamar se impusesse como uma dessas exceções.
“Salvar o Fogo” se encaixou numa rotina em que a leitura é parte primordial do trabalho. Pensar nos assuntos que irei abordar, escrever as colunas e a newsletter, editar, diagramar e publicar, pensar nos convidados, acertar agendas, preparar a pauta, gravar, editar e publicar o podcast, fazer a divulgação de tudo isso e dar atenção às redes sociais, ir atrás de outros trabalhos que ajudem a fechar as contas do mês, lidar com burocracias, certidões negativas, emitir notas fiscais, pagar as contas e impostos. E ler. Ler muito. Eis um resumo da vida profissional.
É raríssimo me dedicar a apenas uma leitura. Semana passada mesmo, ainda pela tela do computador, havia um tempo para o livro de Itamar e outro para alguns artigos acadêmicos. Aparava arestas e consolidava ideias para os encontros sobre literatura latino-americana que tenho ministrado no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc.
Enquanto estruturava o curso, dei uma olhada em “Menino de Ouro”, de Claire Adam, obra de Trinidad e Tobago. Ficou pela metade. É comum leituras serem atropeladas por outras. São muitos os motivos que podem fazer com que não chegue ao fim de um livro. Diversas vezes o adeus é porque a coisa não está agradando. Não era esse o caso do trabalho de Claire; talvez o retome em algum momento.
O estudo, ainda que pouco regrado, é parte da rotina. Daí que vez ou outra passeio livremente por ensaios como “O Infinito em um Junco”, de Irene Vallejo. Recorri a esse na semana passada por um outro motivo: iluminar certo ponto do livro do livro que preparo para o segundo semestre. Gosto quando projetos de fôlego, que exigem leituras específicas, fazem parte do dia a dia.
Há mais. Aproveito para ouvir podcasts sobre literatura enquanto aspiro o chão ou faço a comida. Também acompanho o trabalho de diversos veículos que dão atenção aos livros. E não só pelas notícias. É fundamental conhecer outras opiniões, encarar questões a partir de outras perspectivas. Seja lá sobre qual assunto for, é estúpido jornalista achar que a própria visão de mundo basta. E sou jornalista, um leitor-jornalista. Um jornalista que vê os livros como principais fontes para tudo o que faz.
Esse olhar de colegas daqui e de fora do país me ajudam na hora de escolher o que ler. Não é fácil. Tem semanas que, sem exagero, me chegam 50, 80 livros. Pedidos de editores dos veículos para onde escrevo, sugestões do pessoal das editoras, dicas de outros leitores, hype, reivindicações do momento em que vivemos, vontade de preencher certas lacunas na caminhada como leitor… Tudo isso (e não só isso) faz parte do jogo de tensões a influenciar a escolha de qual livro sacar da pilha. É importante saber lidar com essas pressões, encarar a coisa com serenidade.
Estou com o joelho direito estropiado, o que me afastou do futebol, do vôlei e da corrida e me condenou à fisioterapia. Ainda na semana passada, aproveitei essas idas diárias à fisio para ler no ônibus “O Antigo Futuro”, do Luiz Ruffato, até outro dia um dos autores contemporâneos mais aplaudidos de nossa literatura. Gostei muito de “O Verão Tardio”, que li como jurado do Jabuti de 2020, se não estou enganado.
Em certas épocas do ano também preciso encaixar a leitura de livros inscritos em prêmios na rotina. Fui duas vezes jurado do Jabuti (em Romance Literário e em Biografias e Reportagens) e cinco vezes do Oceanos; é sempre uma ótima via para pescar títulos e nomes que merecem atenção. Quando rola um convite desses, costumo reservar o sábado para me dedicar às avaliações. O final de semana também pode ser uma boa para as leituras necessárias para mediar conversas entre escritores em eventos, um dos meus trabalhos favoritos.
Ainda na última semana, durante as noites ia para o quadrinho “Mukanda Tiodora”, do Marcelo D’Salete. Fazia isso no sofá, antes de dormir. Não gosto de ler HQs na rua nem na cama. O intenso virar de páginas aumenta as chances de incomodar a Bel, minha esposa, que deita mais cedo.
Outro dia uma leitora quis saber como funcionam as minhas leituras. É uma pergunta recorrente que nunca sei muito bem como responder. Por isso o relato. São leituras regidas pelas obrigações, pressões, oportunidades, curiosidades, vontades e certo caos. Gosto disso, gosto muito do meu trabalho. Ainda assim, e pode até parecer lorota, às vezes torço para que sobre um tempo para ler de forma descompromissada, ler por mero prazer.
Substack X Twitter
Desde que comecei a newsletter, angariei boa parte, talvez a maioria, dos leitores no Twitter. Só que há alguns dias, desde que o Notes foi anunciado, a coisa azedou entre a rede do passarinho azul e o Substack, que passou a ser boicotado pelos algoritmos de Elon Musk. (Aliás, perguntei por lá como outros profissionais que vivem entre livros lidam com suas leituras).
A tendência é que fique complicado usar as redes para promover outras redes. Cada vez mais as plataformas querem que os usuários naveguem apenas pelas suas próprias páginas. O ótimo Pablo Villaça escreveu um artigo muito bom a respeito disso.
E agradeço pra caramba a quem puder indicar a newsletter da Página Cinco a outros leitores 🙂
Annie Ernaux na tela
“Eu matei minha mãe em mim naquele momento”.
Um dos livros de Annie Ernaux publicados no Brasil, em “O Acontecimento” (Fósforo) a autora, última vencedora do Nobel de Literatura, reconstrói o aborto clandestino que fez na década de 1960. Escrevi a respeito dele aqui.
Em 2021 a breve narrativa foi adaptada para o cinema. Com o mesmo nome do livro, o filme, que é ótimo, está disponível até o dia 26 de abril na plataforma do Sesc Digital. Não paga nada para assistir, nem cadastro precisa fazer. Eis.
Vale aproveitar para ver também “Cría Cuervos”, beleza do cinema espanhol, um clássico. Este fica disponível até o dia 23 de maio.
É uma boa trazer também dicas de cinema aqui na newsletter? Me digam nos comentários.
Não Tragam Flores
Autora do bom “As Coisas que Perdemos no Fogo” e de “Nossa Parte de Noite”, ambos publicados por aqui pela Intrínseca, a argentina Mariana Enríquez segue passos firmes para se estabelecer como uma estrela pop da literatura. Um teatro lotado para ver a escritora fazendo leituras da própria obra é um bom indício.
Será que em breve veremos algo assim também no Brasil?
Quem ficará com Borges?
Maria Kodama, viúva de Jorge Luis Borges, morreu. Viva, ela era a guardinha da esquina da obra do autor de “Ficções” (vide o que fez com Pablo Katchadjian por conta de “O Aleph Engordado”). Só que Kodama se foi sem deixar testamento e agora ninguém sabe ao certo quem ficará responsável pela obra do escritor argentino. Não é de hoje, diga-se, que há discussões sobre como essa obra deveria ser gerida. Aqui um breve panorama do quiproquó.
☕️ Um café
Há algumas semanas aproveitei uma compra coletiva para pegar diversos cafés da Sabino Torrefação. Gostei de tudo o que provei, os caras são bons. Talvez fale sobre os mais extravagantes em outro momento. Desta vez indico um da linha de entrada: o da Natália, feito na Fazenda Jaguara. Vale conhecer.
📚 O que chegou por aqui
“Uma viagem pelos submundos da música, do autoritarismo e da mente, num thriller surreal, de embalo psicodélico”. É assim que se apresenta “Mantovânia - Rock e Delírio no Fim do Mundo”, primeiro livro de ficção do camarada e colega de jornalismo cultural Silvio Essinger.
O Silvio, que está há mais de década n’O Globo, é um dos caras que mais entendem de música que conheço. Publicado pela Noir, “Mantovânia” sai após uma vaquinha bem-sucedida no Catarse, onde dá para ler mais informações sobre a obra.
📚 O que vem por aí
Um relato sobre os transtornos e os bons momentos da maternidade relacionando a gestação a temas como a arte, a literatura e a natureza, explorando os sentimentos muitas vezes contraditórios da mulher nesse período.
Pelo que pude sacar do paratexto, é o que os leitores encontrarão em “Linea Nigra”, primeiro livro da mexicana Jazmina Barrera publicado no Brasil. Sairá pela Moinhos, tradução de Silvia Massimini Felix.
Por falar nisso, leram a edição da newsletter sobre o bom momento das autoras mexicanas?
📚 O que poderia vir também vem por aí
Não é de hoje que a boliviana Liliana Colanzi pipoca como uma dos nomes para se prestar atenção na atual literatura latino-americana. Recentemente ela pintou numa breve lista da Gato Pardo com “Ustedes Brillan en Lo Oscuro” (Páginas de Espuma), reunião de contos que transitam entre o realismo e a ficção científica. Seria legal se alguma editora o trouxesse para o Brasil.
Descobri que a edição brasileira já está até impressa depois que a nota estava escrita. “Vocês Brilham no Escuro” chegará às livrarias agora em maio, com tradução de Bruno Mattos, pela Mundareú.
A Liliana saiu por aqui na edição 5 da ótima revista Puñado, publicada pela editora Incompleta. Casa, aliás, de outra boliviana: Giovanna Rivero, de quem publicaram o romance “98 Segundos Sem Sombra” e as narrativas breves de “Terra Fresca da Sua Tumba” (recomendo!), ambos em parceria com a Jandaíra.
🍷 Um vinho
Na última edição do podcast, durante o papo com a tradutora Mariana Sanchez, falei por cima sobre os bons vinhos que vêm sendo feitos na região de Salta, no norte da Argentina.
As vinícolas de lá estão apostando em tannats surpreendentes e mandando muito bem com torrontés. É um vinho feito com essa uva branca a dica da vez.
O Colomé Estate Torrontés é um primor que me acompanhou durante a final do Paulistão de 2021, último título do São Paulo. Saudades do vinho e do preço que paguei no vinho na época. Saudades também de um título.
📢 O que mais rolou na Página Cinco
📝 Camus, Bolaño e Lemebel: três filmes sobre escritores e uma aposta (que vocês já viram por aqui)
📝 Rei do povo gratiluz: os 80 anos de “O Pequeno Príncipe”
🎙️ A boa onda da literatura latino-americana: papo com a tradutora Mariana Sanchez:
📝 Dia do Livro Infantil: dicas para crianças e marmanjos
📝 “Salvar o Fogo”: resenha do novo romance de Itamar Vieira Junior, autor de “Torto Arado”
O tanto que eu me identifiquei. A rotina de prof e pesquisadora de literatura envolve essa dedicação quase que integral e fiel aos livros e aos seus assuntos. mas confesso que, em certos dias, apenas quero ficar vendo Friends em looping hahaha
Bom acompanhar seu artigo, Rodrigo. A quantidade de leituras são o bem e o mal também na edição de livros, dando mesmo saudadinha do folhear descompromissado, sem prazo, daqueles de puro prazer pessoal. (Aqui é a Sandra rs).