☠️ Da morte do autor à morte do texto
Autores vivíssimos e a literatura como souvenir
Roland Barthes pregou a morte do autor.
O francês prezava pelo leitor. Tanto faz quem escreveu tal conto, poema ou romance. Isso não deveria ser uma preocupação, sequer uma curiosidade. Cabe, isso sim, ao leitor ir ao texto com todo o seu repertório - a vida, as referências culturais, as ideias - para estabelecer o próprio diálogo com aquela literatura.
Falava de um leitor soberano e recusava ver o texto como algo fechado, refém do histórico e das intenções de seu criador.
Barthes se contrapunha ao que enxergava ali pela década de 1960 e chamava de reinado do autor. Esse costume de ir a dados biográficos, entrevistas e revelações íntimas do sujeito para, a partir disso, buscar compreender sua arte e nela projetar o que encontramos na vida do artista. As pinturas de Van Gogh só poderiam mesmo representar a loucura do holandês, por exemplo.
Não preciso dizer que essa linha de interpretação criticada por Barthes continua fazendo bastante sucesso. Raros livros não vêm acompanhados de um punhado de informações biográficas de seu autor e pinceladas de suas motivações, intenções e conexões.
Editoras e escritores investem no atrito ou na confluência entre a figura que escreve e o que encontramos no texto. Muitas vezes, são bem-sucedidos ao orientar nosso olhar para determinada direção. Por mais que a ideia do francês tenha feito sucesso, me parece que o autor jamais morreu.
E hoje, convenhamos, está vivíssimo. Em eventos literários, podcasts, clubes de leitura… leitores estão ávidos por ouvir o que autores têm a dizer sobre o seu próprio trabalho, contar o que pretendem com seus textos, explicar o funcionamento de suas ficções. Faz parte.
O problema é quando descambamos numa espécie de supremacia do autor sobre a própria obra. O autor deixa de ser mais uma voz a prosear a respeito da arte que fez para ser alçado ao posto de sua principal autoridade. Há quem acredite que a palavra final sobre determinado livro deve ser da própria pessoa que o escreveu. É uma cilada.
Não há nada que valide os escritores como melhores intérpretes do que escrevem, muito menos que lhes confira a exclusividade sobre as interpretações, as linhas de leitura possíveis. Muitas vezes, a distância entre a intenção, a execução e a percepção do leitor é tremenda.
Quer recusar a morte do autor? Beleza. Mas a liberdade do leitor deve sempre permanecer, mesmo quando contraria a ânsia do autor controlar os discursos criados a partir do que escreveu. Depois de pronto, o texto pertence ao mundo. Cada um que o intérprete como bem entender, com base em suas próprias referências - ainda que boas argumentações sempre sejam bem-vindas.
Há algum tempo, no entanto, começo a notar mais uma derivação nesse jogo de nuances.
O autor não morreu. Pelo contrário. Está aí, vivíssimo. Tão vivo que às vezes toma uma dimensão maior do que a própria obra.
Penso em gente que se alinha a determinados nomes por colá-los a certos discursos, associarem suas figuras a valores que também defendem. Colocam o escritor à frente de sua literatura por conta de sua presença junto ao público.
Se vão ao livro, é apenas para buscar por elementos que validem a exaltação prévia, que corroborem o deslumbre pela figura que o escreveu. A literatura vira uma espécie de souvenir, um boton para informar aos outros que também se filia ao que aquele escritor representa.
Aqui no século 21, meu amigo Barthes, o que temos muitas vezes é a morte do texto.
E você, o que pensa disso? Fica com o leitor ou fica com o autor?
Clube do livro
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Nossas próximas leituras estão definidas:
Em agosto conversaremos sobre “Kramp”, pequena preciosidade da chilena María José Ferrada (Moinhos, tradução de Silvia Massimini Felix).
Em outubro será a vez do doloroso “Homens ao Sol”, de Ghassan Kanafani, um dos principais nomes da literatura palestina (Tabla, tradução de Safa Jubran).
E em dezembro conversaremos sobre uma das escritoras brasileiras mais aplaudidas dos últimos anos: Micheliny Verunschk. O livro escolhido é “Caminhando com Os Mortos” (Companhia das Letras), vencedor do Oceanos de 2024.
Aqui está a relação dos livros que já lemos.
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“Em comum, o fato de serem eventos do mercado. Nenhum problema nisso, exceto se alguém crer se tratar de manifestações culturais pudicas. Bienal e Flip estão irmanadas, são a CCXP dos seus segmentos. Alta ou baixa, dá na mesma M (de mercado)” - do
Escrever para entender o que penso
“Escrever é uma forma de entender o que estou pensando, e não quero usar uma ferramenta digital para fazer isso por mim. Não vejo como ela poderia me ajudar, porque se quero entender os meus pensamentos, preciso descobrir o que estou pensando” - do Ted Chiang para a
Quem quer pensar?
“Tem gente que se orgulha de não pensar e de ser incapaz de fazer isso. Tudo na vida de uma pessoa que não pensa é fácil. Ela não tem dramas internos para resolver. A pessoa bloqueia qualquer indício de pensamento ruim com um vídeo do Tiktok. Aí surge uma tecnologia que promete fazer todo o pensamento por você e já viu: abraçam com toda a empolgação” - da








No geral, estamos falando demais sobre e lendo de menos. Excelente texto.
filas imensas em bienal para tirar selfie com autor/a corroboram sua argumentação